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Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



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14 de setembro de 2013

Tem ou não tem problema?


A cultura popular cristã, ou se alguém quiser, a consciência coletiva cristã popular, enfim, a mentalidade, o mundo, ou seja qual for o nome que tenhamos usado, sempre com o destaque no "popular", reage com repulsa a qualquer referência à intimidade entre as pessoas do mesmo sexo, especialmente, entre os homens (até porque a mulher, naquele mesmo ambiente, é frequentemente ignorada). Não precisamos de provas científicas para constatar a influência que tal cultura exerce nos costumes e comportamentos da sociedade, por mais laica que ela própria se declare. Alguém já viu o abraço de dois homens? Evita-se o contato frontal, é algo que parece com a pegada de lado, com uns tapinhas que lembram os golpes de luta. Se passar além disso, já surge aquele "Opa!". Se tocar no assunto de sentimentos, ou de intimidade entre os homens, logo aparece o comentário sobre a "coisa do gay". É algo tão vergonhoso, nojento e estranho que a melhor coisa é, simplesmente, evitar o assunto. Entretanto, a própria cultura cristã, naquela dimensão que chamamos de espiritualidade, ou mística (e, por isso, não pertence ao nível popular), tais referências não só existem, mas ainda ganham a intensidade extraordinária.

Vejamos algumas afirmações:

Desde o século III, o celibato encontrou seu lugar na vida e na espiritualidade cristãs como estado superior ao casamento, comparado com a condição angélica, esponsais com Cristo, núpcias místicas, oferecimento total e perfeito a Deus (compare aqui). Embora a ideia das núpcias místicas com Cristo tenha sido mais difundida entre as mulheres (Santa Catarina, Santa Teresa, Santa Teresinha, etc.), também é conhecida e experimentada entre os homens. O clássico é, sem dúvida, São João da Cruz que, em vários textos, exalta essa dimensão da vida espiritual. A referência direta é o amor entre homem e mulher. Ainda que se possa tentar interpretar essa imagem tendo Cristo como "ele" e a alma como "ela", não deixa de ser a união íntima entre "ele" (Cristo, verdadeiro homem) e "ele" (no caso, João da Cruz, também verdadeiro homem, composto de alma e corpo). O grande místico espanhol do século XVI não teve problema em escrever, por exemplo, no "Cântico espiritual":

(I) Onde é que te escondeste,
Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste,
Havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras já ido.
 
(XI) Mostra tua presença!
Mate‑me a tua vista e formosura;
Olha que esta doença
De amor jamais se cura,
A não ser com a presença e com a figura.
 
(XXIV) Nosso leito é florido,
De covas de leões entrelaçado,
Em púrpura estendido,
De paz edificado,
De mil escudos de ouro coroado.
 
(XXVI) Na interior adega
Do Amado meu, bebi; quando saía,
Por toda aquela várzea
já nada mais sabia,
E o rebanho perdi que antes seguia.
 
(XXVII) Ali me abriu seu peito
E ciência me ensinou mui deleitosa;
E a ele, em dom perfeito,
Me dei, sem deixar coisa,
E então lhe prometi ser sua esposa.
 
(XXXVI) Gozemo‑nos, Amado!
Vamo‑nos ver em tua formosura,
No monte e na colina,
Onde brota a água pura;
Entremos mais adentro na espessura.

Na verdade, toda essa questão de relação íntima entre dois seres do sexo masculino, é bem anterior à experiência mística do século XVI. A teologia cristã, embora sempre consciente de que se trata de um "mistério indizível", quando procura expor a dinâmica da Santíssima Trindade, diz: o Pai gera o Filho, o Filho é gerado pelo Pai, o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (Catecismo da Igreja Católica, Compêndio, n. 48). Evidentemente, tal afirmação não quer dizer que as três Pessoas da Santíssima Trindade sejam de "sexo masculino", ainda que essa tenha sido a imagem comum: é o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ao mesmo tempo, a frase "o Pai gera o Filho", leva-nos à analogia com a família humana. Disse sobre isso o Papa Bento XVI: Não é só a Igreja que é chamada a ser imagem do Deus Uno em Três Pessoas, mas também a família fundada no matrimônio entre o homem e a mulher. Talvez para tentar superar aquela "masculinização" de Deus, o Papa João Paulo I, em seu brevíssimo pontificado de apenas 33 dias, tenha se referido a Deus-Mãe, sem deixar de espantar, tanto os teólogos, quanto a parte "popular" da Igreja, isto é o povo. O Papa dizia, por exemplo:

(...) somos objeto, da parte de Deus, de um amor que não se apaga. Sabemos que tem os olhos sempre abertos para nos ver, mesmo quando parece que é de noite. Ele é papai; mais ainda, é mãe. Não quer fazer-nos mal, só nos quer fazer bem, a todos. Os filhos, se por acaso estão doentes, possuem um título a mais para serem amados pela mãe. (Angelus, 10. 09. 1978)

...bem que o Catecismo explica isso assim: Ao designar Deus com o nome de «Pai», a linguagem da fé indica principalmente dois aspectos: que Deus é a origem primeira de tudo e a autoridade transcendente, e, ao mesmo tempo, que é bondade e solicitude amorosa para com todos os seus filhos. Esta ternura paternal de Deus também pode ser expressa pela imagem da maternidade, que indica melhor a imanência de Deus, a intimidade entre Deus e a sua criatura. (...) Convém, então, lembrar que Deus transcende a distinção humana dos sexos. Não é homem nem mulher: é Deus. Transcende também a paternidade e a maternidade humanas, sem deixar de ser de ambas a origem e a medida: ninguém é pai como Deus. (CIC, 239). Nesta linha expressa-se, também, Bento XVI, em seu livro "Jesus de Nazaré": Não é Deus também mãe? Há a comparação do amor de Deus com o amor de uma mãe: "Como uma mãe consola os seus filhos, assim Eu vos consolo" (Is 66, 13) (...) Se na linguagem formada a partir da corporeidade do homem parece inscrito o amor da mãe na imagem de Deus, vale porém, ao mesmo tempo, que Deus nunca é designado como mãe nem com esta invocação alguém a Ele se dirija, nem no Antigo nem no Novo Testamento. "Mãe" não é na Bíblia um título divino. (...) Naturalmente, Deus não é nem homem nem mulher, mas precisamente Deus, o criador do homem e da mulher. (Bento XVI, "Jesus de Nazaré", vol. I, p. 130).

Deus não é nem homem nem mulher, entretanto, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, "distinta na sua essência única e igual na sua majestade" (cf. Prefácio "O Mistério da Santíssima Trindade"), veio a este mundo como verdadeiro ser humano (sem deixar de ser verdadeiro Deus) e ser humano do sexo masculino. É com este Deus-Homem sou convidado a viver em mais profunda intimidade que, na experiência mística, assemelha-se e muito, à intimidade conjugal.

Ora, não estou reduzindo a vida mística ao nível do ato sexual puramente carnal. Apenas procuro mostrar que a linguagem e a simbologia cristã, com seus mais firmes fundamentos na Bíblia, recorrem à imagem de intimidade humana e, neste caso, a intimidade de dois seres humanos do mesmo sexo. Parece que o próprio Deus revela o seu mistério através de uma realidade que - devido às limitações da mentalidade humana - causa espanto, nojo e medo em tanta gente.

Afinal, na tradição espiritual cristã, tem ou não tem problema com a intimidade entre dois homens?

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