Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão, à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas. (Lc 16, 19-21)
A reflexão sobre o Evangelho de hoje (Lc 16, 19-31) pode ser feita de várias maneiras. Uma delas é aquela que publiquei neste blog em 2011. A riqueza da Palavra de Deus, porém, permite-nos novas descobertas, principalmente, quando fazemos uma "leitura existencial": Observe, conforme a situação que você está vivendo, que personagem se encaixa melhor em você. Coloque-se no lugar de cada um deles (Pe. Léo). "Com quem nos identificamos?". A razão para o uso de tal abordagem é afinar a nossa inteligência, para que possamos, então, começar a levantar certas questões... (Pe. James Alison). Partindo destes princípios, proponho hoje três pontos de vista diferentes, lembrando de que quem está lendo o texto é um homossexual que recebeu o dom da fé cristã e procura cultivá-la, dentro do contexto de sua específica identidade.
1. A primeira, mais imediata e mais nítida interpretação, leva-me a identificar a pessoa homossexual na figura de Lázaro e... a Igreja, sendo representada pelo rico. Por que assim? Se olharmos bem à sociedade de hoje, ainda que não seja no sentido popular da palavra, mas quem se veste com roupas finas e elegantes e faz festas esplêndidas todos os dias, é a Igreja. No chão (e, muitas vezes, sem chão), à porta da igreja, sem poder (ou querer) entrar, está o/a homossexual, cheio de feridas. Recordo aqui as palavras do Papa, de sua recente entrevista, que dizia: Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Por sua vez, a Igreja, faz as suas festas esplêndidas, dedicando-as (pelo menos, este é o propósito) a Deus que é Amor. Além disso, a Igreja declara ter o monopólio do amor e é ela quem decide qual forma de amor é correta e permitida. O pobre Lázaro quer matar a fome com as sobras que caem da mesa do rico e, provavelmente, fica na mesma situação do filho pródigo: O rapaz queria matar a fome com a comida que os porcos comiam, mas nem isto lhe davam (Lc 15, 16). A pessoa homossexual tem fome e sede da graça de Deus e do amor humano. Enquanto "o rico" não lhe der a sua permissão, vêm os cachorros lamber as feridas de Lázaro. Sem o acesso à graça e sem a permissão para amar, o Lázaro deixa-se lamber pelos cachorros do sexo casual, da prostituição, da promiscuidade. Uma lambida de cachorro pode, até, trazer o alívio momentâneo, mas, em consequência, agrava o sofrimento. Lázaro, sujo e lambido pelos cachorros, é nojento aos olhos do rico, por isso, cria-se no coração dele uma particular indiferença. O detalhe da parábola de Jesus fala de festas diárias. Imagino aquele rico, saindo e entrando, todos os dias, por aquela mesma porta, diante da qual, no chão, estava o pobre Lázaro. Afinal, o rico precisava resolver muita coisa em relação às festas, mas, certamente, Lázaro tenha se tronado mais um elemento da paisagem ao qual não se presta mais atenção.
2. A primeira leitura do Evangelho pode conservar em nós o "coitadismo". Olhar ao mundo e à Igreja, exclusivamente da posição de vítima, certamente não vai fazer bem a ninguém. Eu sei que existe a homofobia e que a luta contra ela é importante. Entretanto, a minha vida não pode se reduzir ao ponto de vista de Lázaro. Como escrevi em 2011, o "mundo gay" estende-se por todas as camadas da sociedade, mas a mídia (inclusive a do próprio "mundo gay") apresenta, mais frequentemente, os homossexuais que se vestem com roupas finas e elegantes e fazem (ou participam de) festas esplêndidas todos os dias. Por sua vez, é conhecida a sensibilidade dos homossexuais em relação a "roupas finas e elegantes", bem maior que dos heterossexuais. Seria possível, então, ler a mesma parábola de Jesus, identificando o/a homossexual com o rico? E, com o rico que fica insensível em relação ao pobre Lázaro? Quem, então, seria representado por Lázaro? Vamos inverter os papeis. Para muitos homossexuais é, justamente, a Igreja que não merece qualquer atenção. Quantos, entre nós, deixam de lado a Igreja, permitindo que seja lambida pelos cachorros (por exemplo, aqueles que só sabem falar mal dela). E da nossa riqueza não cedemos coisa alguma: nem a mera presença, nem os talentos que temos, nem a nossa fé e, menos ainda, a experiência do nosso amor. Talvez a Igreja queira se alimentar com as sobras que caem de nossas mesas, mas ela é, simplesmente, desprezada.
3. Talvez uma terceira tentativa de leitura possa ser mais útil. Independentemente do fato de eu ser gay, ou um "ativista" da Igreja, sou chamado à caridade. As periferias, mencionadas tanto pelo Papa, muitas vezes encontram-se diante da minha porta. Jesus disse: Pobres vós tereis sempre convosco (Mt 26 11) e o Apóstolo Pedro, lembra o antigo provérbio: a caridade cobre a multidão dos pecados (1 P 4, 8; cf. Pr 10, 12). O que importa, é a caridade, a sensibilidade, a partilha. É a questão de imitar o Senhor que faz justiça aos que são oprimidos, dá alimento aos famintos, faz erguer-se o caído, protege o estrangeiro e ampara a viúva e o órfão, como dizia o Salmo de hoje (Sl 145). Faz bem fazer o bem. E não apenas para uma satisfação momentânea, mas em vista à eternidade. Além disso, a experiência de Lázaro, assemelha-nos a Jesus, tanto em sua cruz, quanto na glória.
Termino com os votos que, tanto aqui, quanto na eternidade, desapareça aquele grande abismo, do qual fala Abraão na parábola: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós (Lc 16, 26).
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