Confesso! Estou fazendo um jogo de palavras, lembrando de virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança), ou de pontos cardeais (os quatro pontos de referência que permitem a orientação: leste, sul, oeste, norte). "Cardo", em latim, quer dizer dobradiça, eixo em torno do qual gira alguma coisa. No caso da dobradiça, gira a porta, no caso do eixo da terra, giram os quatro pontos cardeais. No caso das virtudes, em torno das quatro virtudes cardeais, giram as outras virtudes. Mas, também, o cardeal é um alto dignitário da Igreja Católica, que assiste o Papa em diversas competências. Entre todos os seus atributos, encontram-se (certamente) as quatro virtudes cardeais. E as pontas do crucifixo que ele carrega no seu peito, simbolizam, também (por que não?), a sua nobilíssima missão de orientar (e não desorientar!) o povo de Deus. Por isso estou falando das "razões cardeais" que, perfeitamente, poderiam ter o nome de "razões do cardeal".
O meu problema, que vou tentar apresentar hoje, consiste em concordar com a maioria das razões que o cardeal Odilo Scherer apresenta em mais um artigo e, ao mesmo tempo, saber que as mesmíssimas razões estão sendo usadas por ele, para defender as teses com as quais não concordo. Deu para entender? Pois é. Eu também tenho essa dificuldade.
O artigo "Homem e mulher ele os criou", curiosamente, não foi publicado no portal da CNBB, mas está disponível no site da Arquidiocese de São Paulo (aqui). O sugestivo título, bem como o contexto de afirmações anteriores (comentadas por mim aqui, e aqui), inscrevem-se claramente na crescente onda de polêmicas sobre a homossexualidade, em perspectiva da próxima Parada do Orgulho LGBT em São Paulo. Ninguém tem dúvida sobre o ponto de vista da Igreja (e do cardeal em particular) sobre esse assunto. Uma leitura atenta, porém, deixa o leitor um tanto desorientado. Você já tentou tomar uma sopa com o garfo? Ou tirar água do poço com uma peneira? É, mais ou menos, essa impressão que tenho ao ler o texto de Dom Odilo. Vamos tentar ler e analisar...
O pensamento cristão procura compreender e explicar o ser humano à luz do desígnio de Deus sobre o homem e a mulher; esse desígnio pode ser conhecido pela natureza das coisas e pela revelação divina, recolhida na Sagrada Escritura. Assim, a antropologia cristã afirma que o ser humano é composto de dois gêneros: masculino e feminino. “Homem e mulher Deus os criou” (Gn 1,27), constata o autor sagrado, depois de relatar de maneira poética que Deus decidiu criar o ser humano à sua imagem e semelhança.
Ainda que o autor não esteja dizendo isso abertamente, supõe-se aqui a tese, segundo a qual Deus teria criado apenas o ser humano heterossexual. Aquela frase bíblica, repetida com insistência em todos os textos doutrinais da Igreja, é tida como o argumento fundamental para condenar a homossexualidade, como se um gay fosse menos homem e uma lésbica menos mulher. Deixando essa ideia de lado, o texto do cardeal está perfeitamente aceitável, bem como o trecho em seguida:
Afirma ainda a antropologia cristã que o ser humano não é fruto de uma evolução caótica, mas de um querer divino, sábio e bom, que não é difícil de ser reconhecido na própria natureza humana: na sua corporeidade, sua inteligência, vontade e capacidades naturais, orientadas não apenas para a sobrevivência, mas também para a busca da verdade e da plenitude do viver. O homem é dotado de liberdade e tem a capacidade de discernir e de decidir-se pelo bem ou pelo mal. No exercício da liberdade está uma das bases da grandeza e da dignidade do homem.
O ser humano, portanto, não é ‘esta metamorfose ambulante’, que segue vagando pela vida sem saber quem é, o que quer, para quê vive, por que é aquilo que é; nem está preso a um determinismo cego, que o acorrenta aos acontecimentos, sem que ele possa fazer-se senhor das próprias decisões. Cabe-lhe tomar conta de si mesmo e viver de forma responsável, conforme sua dignidade e sua natureza.
Tenho aqui uma observação semelhante à anterior. Somente sustentando a estranha tese de que a homossexualidade é algo contra a natureza que as nobres afirmações do prelado ganham o tom de acusação ou condenação da homossexualidade. Ao abandonarmos tal equívoco, vamos concordar com o cardeal sobre a importância de tomar conta de si mesmo e viver de forma responsável, conforme sua dignidade e sua natureza.
Agora vem a bomba. Um verdadeiro espetáculo digno de aplausos (caso não exista todo um contexto antigay). Um aspecto importante desse “viver conforme à sua natureza” consiste em assumir a própria identidade sexual. Há muita confusão sobre isso na cultura atual e a sexualidade já não é levada a sério, como um fato de natureza, mas é tida como um fenômeno cultural. Nem mesmo a diferenciação sexual entre masculino e feminino é levada a sério; corre muito a idéia de que a identidade sexual é moldada pela cultura e pela subjetividade e que cada um “constrói” a sua identidade sexual; a diferenciação sexual no corpo humano seria apenas um “fato secundário” e contaria mais aquilo que o sujeito decide ser. Identidade sexual seria uma questão de opção.
O interessante é que, justamente, a própria Igreja parece sustentar a teoria de "opção sexual". Nenhum homossexual sensato acredita ter escolhido a própria identidade sexual. De novo, vejo-me aplaudindo o arcebispo que, querendo ou não, acaba denunciando a fragilidade de toda argumentação católica vigente. Tenho, para mim, duas explicações distintas: ou o cardeal mudou de lado, ou continua andando para trás, repetindo as ideias que vigoravam há 30-40 anos (ou mais).
A consequência disso é que aumentam os comportamentos sexuais pouco definidos, nem masculinos, nem femininos. Sempre mais se fala de homossexuais, bissexuais, transexuais... Em tal contexto, ser heterossexual, com identidade definida de homem (masculino) e de mulher (feminina) aparece apenas como uma entre as tantas possibilidades e opções quanto à identidade sexual. A pergunta que fica no ar é, se não há um grave equívoco nisso? Vai ficar assim daqui por diante? Aonde vai levar isso?!
As interrogações são interessantes. E as afirmações, geram novas perguntas, por exemplo, o que seria o tal de "comportamento masculino ou feminino"? Concordo plenamente com a parte que diz: "ser heterossexual (...) aparece apenas como uma entre as tantas possibilidades quanto à identidade sexual". Retirei o termo "opções", de acordo com as (minhas) conclusões anteriores. Por isso respondo: Sim, Eminência! Há um grave equívoco em falar de opção! E espero que não vai ficar mais assim daqui por diante (compartilho a sua preocupação!). A pergunta mais importante á a última: Aonde vai levar isso?! Aqui, sim, há duas opções. Ou "isso" vai nos levar, finalmente, à plena aceitação do desígnio de Deus que quis ter a sua obra-prima tão rica e diversificada, ou então, infelizmente, vai nos levar a atitudes ainda mais preconceituosas, anticristãs e desumanas. Esta é, justamente, a opção de cada um de nós.
Para a antropologia cristã, a confusão quanto à identidade sexual, que se espalha sempre mais na cultura, não deixa de levantar uma séria preocupação. Para o pensamento cristão, a diferenciação sexual (homem e mulher) deve ser levada plenamente a sério; a sexualidade afeta todos os aspectos da pessoa humana, na sua unidade de alma e corpo. Ela diz respeito à afetividade, à capacidade de amar e de procriar; de maneira mais geral, diz respeito à aptidão de criar vínculos serenos de comunhão com os outros.
Devo acrescentar aqui que a confusão quanto à identidade sexual, espalha se não somente na cultura, mas também na Igreja e realmente deve preocupar. Concordo plenamente que a diferenciação sexual (homem e mulher, homossexual, bissexual, heterossexual, etc.) deve ser levada plenamente a sério, pois a sexualidade afeta todos os aspectos da vida. Até agora, mesmo sem a capacidade de procriar dentro do relacionamento que lhes é próprio, os homossexuais sofrem uma pressão insuportável por parte da grande parte da sociedade que, apoiada pela doutrina oficial da Igreja, tenta privá-los do direito de viver a sua afetividade e de criar vínculos serenos de comunhão com os outros. Obrigado, Dom Odilo, por perceber e apontar isso!
Cabe a cada homem e mulher reconhecer e aceitar a própria identidade sexual. As diferenças e complementariedades físicas, morais e espirituais estão orientadas para os bens do casamento e da família. A harmonia do casal e da sociedade depende, em parte, da maneira como se vivem entre os sexos a complementariedade e o apoio recíprocos. A pretensão de mexer nessa harmonia que Deus estabeleceu entre os sexos e de submeter a identidade sexual ao arbítrio da vontade, tão influenciável por fatores culturais e dinâmicas sócio-educativas (ou ‘deseducativas’...), é uma temeridade, que não promete bons frutos para o futuro da humanidade.
Fiquei admirado com a primeira (espetacular) frase desse trecho. Espero que a Igreja, por exemplo, através de uma Pastoral de Diversidade Sexual, ajude a todos os que tiverem alguma dificuldade ou medo de reconhecer e aceitar a própria identidade sexual. Espero que a Igreja também reconheça e aceite a identidade sexual de todos. Não seria nisso, porventura, a realização das palavras divinas "Chegou até vós o Reino de Deus"? Concordo, também com as frases seguintes que falam sobre tudo aquilo que contribui para o bem da família e da sociedade. De fato, mexer nessa harmonia e nessa diversidade que o próprio Deus estabeleceu, não promete bons frutos para o futuro da humanidade.
A Igreja Católica, portanto, vê com preocupação a crescente ambiguidade quanto à identidade sexual, que vai tomando conta da cultura. Antes de ser um problema moral, é um problema antropológico. Evidentemente, isso não justifica qualquer tipo de violência e agressão contra homossexuais ou quem quer que seja, mas é um convite a uma reflexão séria. Não é possível que a natureza tenha errado ao moldar o ser humano como homem e mulher. Isso tem um significado e é preciso descobri-lo e levá-lo a sério.
Aqui fiquei na dúvida se a Igreja vê com preocupação a crescente ambiguidade quanto à identidade sexual, que vai tomando conta dela própria. Se não tiver percebido isso, cada uma de suas advertências sobre a violência e agressão contra homossexuais, continuará sendo pura hipocrisia. Fiquei curioso um pouco com a personificação da natureza, pois sempre pensei que foi o próprio Criador que tenha moldado o ser humano, mas, também, não posso esperar tanta precisão do autor...
Para quem deseja a verdade e busca conformar sua vida ao desígnio de Deus, permanece o convite a se deixar conduzir pela luz da Palavra de Deus e pelo ensinamento da Igreja também no tocante à moral sexual. O 6º mandamento da Lei de Deus (“não pecar contra a castidade”) não foi abolido e significa, positivamente, viver a sexualidade de acordo com o desígnio de Deus.
Pois é, senhor cardeal. Acho que toda a questão está em nosso entendimento do desígnio de Deus. Quanto ao 6° mandamento, a Bíblia transmite-o de forma um pouco diferente daquela versão fornecida pelos catecismos católicos e citada pelo cardeal ("não pecar contra a castidade"), isto é: Não cometerás adultério. (Ex 20, 14; Deut 5,18). Mas isso já é outro assunto...
Nossa, ainda não tô acreditando que eu encontrei esse blog... =D
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