Em verdade, em verdade, eu vos digo: estais me procurando não porque vistes sinais, mas porque comestes pão e ficastes satisfeitos. (Jo 6, 26) A resposta de Jesus à multidão, tem o contexto mais amplo. Logo depois do milagre de multiplicação dos pães (Jo, 6, 5-15), à vista do sinal que Jesus tinha realizado, as pessoas exclamavam: “Este é verdadeiramente o profeta, aquele que deve vir ao mundo”. Quando Jesus percebeu que queriam levá-lo para proclamá-lo rei, novamente se retirou sozinho para a montanha. (vv. 14-15). Evidentemente, seria ótimo ter um rei desse tipo. Ele resolveria todos os problemas e nem seria mais necessário trabalhar e se preocupar com coisa alguma. Mas Jesus não quer ser um rei dos acomodados e preguiçosos. Nem deseja um reino aqui, neste mundo (embora o seu início e constante crescimento, aqui na terra, faça parte do plano). Expressa isso bem o Apóstolo Paulo, quando diz: Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão. (1Cor 15,19) Cá, entre nós, Paulo - com esta frase - derruba, por completo, toda - assim chamada - "teologia da prosperidade", cuja onda incontrolável observamos, há umas décadas. Santa Catarina de Sena, ao transcrever suas lucuções interiores no livro "O Diálogo" (Ed. Paulus; São Paulo, 1984), fala de três tipos de adesão a Deus: [1] por medo do castigo, [2] devido os dons recebidos (ou em busca deles) e [3] por amor. Somente a terceira motivação está correta (agradável aos olhos de Deus) e verdadeiramente frutuosa. Deixando de lado a possibilidade de não procurar a Deus (estou me dirigindo àqueles que se preocupam com a sua fé e a vida espiritual), com frequência nos vemos no primeiro e/ou segundo "degrau". Como aqueles homens que correram atrás de Jesus, porque "comeram pão e ficaram satisfeitos", nós também procuramos por Ele, quando estamos em alguma emergência. Isso faz parte da natureza humana, o que documenta a própria Sagrada Escritura. Vejamos um resumo da história de Israel do Antigo Testamento, no Salmo 106(105):
7 Nossos pais, no Egito, não compreenderam teus milagres;
não se lembraram de tuas numerosas graças;
revoltaram-se contra o Altíssimo junto ao mar Vermelho.
13 Depressa esqueceram suas obras,
não esperaram que executasse seu plano.
15 Concedeu-lhes o que pediam, satisfez a sua gula.
19 Fizeram um bezerro em Horeb
e adoraram o metal fundido;
21 Esqueceram o Deus, que os tinha salvado,
que tinha feito façanhas no Egito
43 Muitas vezes ele os libertou,
mas eles se obstinavam na sua rebeldia
e se arruinaram por causa de suas iniquidades.
44 Contudo ele olhou para sua desgraça,
quando escutou suas súplicas.
Jesus no Evangelho, com outras palavras, diz o mesmo: Quantas vezes eu quis reunir teus filhos como uma galinha reúne seus pintainhos debaixo das asas, mas não quisestes! (Mt 23,37) Santa Catarina (transmitindo a voz de Deus) escreve sobre os pecadores que, forçados pelos sofrimentos da vida e medo dos castigos futuros, procuram livrar-se do egoísmo. (...) Mas o temor servil (medo de castigos), sozinho, não é suficiente para fazer o pecador progredir. (...) [n° 49; p. 113] Inicialmente imperfeito, o homem vive no temor servil; com perseverança e esforço, chega ao amor interesseiro das consolações (espirituais) no qual se compraz olhando-me como algo útil para si mesmo. Tal é o roteiro de quem deseja chegar ao amor-amizade e filial. Este último é o amor perfeito; com ele alcança-se a herança do reino. [n° 63; p. 134] Julguei oportuno tratar de tais enganos, nos quais costumam cair os cristãos da "caridade comum" que vivem com pouco esforço em tempo de consolações (...) Estes ditos enganos acontecem com aqueles que me amam imperfeitamente, com aqueles que procuram o dom, não o doador. (...) A alma que chegou ao terceiro estado - de amor-amizade e de amor filial - já não me ama interessadamente. Comporta-se como amigo íntimo. O amigo verdadeiro, ao receber um presente, olha primeiro para o coração e o amor do doador; depois examinará o objeto e o conservará como recordação. [n° 72; pp. 151-152]
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Embora Santa Catarina, Doutora da Igreja, tenha falado sobre os mais altos níveis de vida mística, as suas orientações são muito úteis para o crescimento de nossa - mais comum e humilde - espiritualidade. E mais uma coisa: examinar as nossas motivações, por exemplo, no cultivo de relacionamentos pessoais, contribui muito para o amadurecimento de nosso amor. As mencionadas pela santa três fases do amor a Deus, aplicam-se perfeitamente à nossa experiência do amor humano. Quando nos apaixonamos e conseguimos conquistar aquela pessoa especial, inicialmente somos capazes de maiores sacrifícios, generosos gestos de admiração, etc. (para agradar o outro), mas, muitas vezes, o que nos impulsiona, é o medo de perder aquela pessoa. Na etapa seguinte, quando já sentimos mais segurança no relacionamento, começamos a agir com a finalidade de obter "consolações" (como diria Catarina), ou seja: a nossa própria satisfação. É difícil, muitas vezes, admitir nessa fase, o nosso próprio egoísmo. Na minha opinião, é justamente nesta segunda etapa, que o relacionamento corre mais risco de se esgotar emocionalmente o que, com frequência, leva diretamente ao rompimento. Lembremos o que disse Catarina: "Tal é o roteiro de quem deseja chegar ao amor-amizade", ou seja, aquela temporada (logo após a primeira paixão e a luta pela conquista), marcada pelo nosso natural egoísmo, faz parte do roteiro. É importante detectar e admitir isso. O egoísmo pode ser superado. É, muitas vezes, uma batalha feroz contra nós mesmos, mas, vale a pena, pois, nasce assim, o amor-amizade (podemos chamá-lo, também, de amor-respeito, amor-partilha e - como na vida mística - o amor-união). Agora, neste terceiro degrau, o relacionamento tem muito mais probabilidade de ser feliz e duradouro. É o que desejo a todos!
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