A liturgia de hoje (27/05) leva-me a refletir sobre o amor que se expressa no diálogo conduzido pelo Espírito Santo. A busca de soluções, diante dos desafios concretos e sempre novos, muitas vezes exige o sacrifício. Ainda que, frequentemente, não chegue ao extremo, o ideal proposto por Jesus de “dar a vida” (cf. Jo 13, 15), sempre se faz presente. A polêmica sobre os pagãos que abraçaram a fé em Cristo, relatada na liturgia desta semana, é o excelente exemplo. A questão começa com muita confusão e uma grande discussão (cf. At 15, 2). Depois houve testemunhos, um grande silêncio e a decisão final dos Apóstolos, ou melhor, do Espírito Santo junto com eles (cf. At 15, 4-29). Vale à pena transcrever as palavras de Paulo: Irmãos, vós sabeis que, desde os primeiros dias, Deus me escolheu, do vosso meio, para que os pagãos ouvissem de minha boca a palavra do Evangelho e acreditassem. Ora, Deus, que conhece os corações, testemunhou a favor deles, dando-lhes o Espírito Santo como o deu a nós. E não fez nenhuma distinção entre nós e eles, purificando o coração deles mediante a fé. Então, por que vós agora pondes Deus à prova, querendo impor aos discípulos um jugo que nem nossos pais nem nós mesmos tivemos força para suportar? Ao contrário, é pela graça do Senhor Jesus que acreditamos ser salvos, exatamente como eles. (At 15, 7-11). Certamente, não foi fácil modificar a mentalidade dos irmãos de origem judaica. Todos eles tinham recebido, com leite materno, a convicção de pertencer ao único povo escolhido por Deus. E agora, precisavam reconhecer o fim desta exclusividade, quer dizer, perder a vida para ganhar a vida (cf. Mt 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24; 17,33). Paulo define essa perda/conquista: Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus. (Gal 3,28) Portanto, não há diferença entre judeu e grego: todos têm o mesmo Senhor, que é generoso para com todos os que o invocam. (Rm 10, 12)
Este princípio de amor, capaz de dar a vida e de acolher irmãos diferentes, levou Santo Agostinho de Cantuária [Canterbury] (+ 604), celebrado hoje, a encarar a perigosa missão na Grã Bretanha, a pedido de seu pai espiritual, São Gregório Magno, o papa. No ano de 597, Agostinho e 40 outros monges beneditinos, ao desembarcarem, seguiram em procissão ao castelo do rei, tendo a cruz à sua frente e entoando cânticos sagrados. Não seria grande surpresa, se um desses cânticos tivesse sido o Salmo 56, proclamado hoje na liturgia: Meu coração está pronto, meu Deus, está pronto o meu coração! Vou louvar-vos, Senhor, entre os povos, dar-vos graças por entre as nações! Agostinho, com a ajuda de um intérprete, apresentou ao rei Etelberto o Evangelho e pediu permissão para pregá-lo em suas terras. Impressionado com a coragem e a sinceridade do religioso, o rei, apesar de todas as expectativas em contrário, deu a permissão imediatamente. No Natal do mesmo ano mais de dez mil pessoas já tinham recebido o batismo. Entre elas, o próprio rei e toda a nobreza da corte. Em seguida, Agostinho foi nomeado arcebispo da Cantuária, primeira diocese fundada por ele.
Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos designei para irdes e para que produzais fruto e o vosso fruto permaneça. (Jo 15, 16).
Santo Agostino é venerado, igualmente, por católicos e anglicanos, sendo assim uma referência no diálogo entre as duas Igrejas. Em 1982, o Beato Papa João Paulo II, durante sua viagem à Inglaterra, visitou o túmulo do Santo e, ali mesmo, encontrou-se com Robert Runcie, o 102° Arcebispo de Cantuária (leia o discurso do Papa aqui) e ambos assinaram a “Declaração Conjunta” (aqui) que, entre outras coisas, diz: O nosso objetivo não se limita apenas à unificação das nossas duas Comunhões, excluindo os outros Cristãos, mas antes estende-se ao cumprimento da vontade de Deus, a qual consiste na unidade visível de todo o seu povo. No presente diálogo, e nos que são desenvolvidos por outros Cristãos entre si e conosco, nós reconhecemos, nos acordos que pudermos alcançar e nas dificuldades que encontramos, um novo desafio a abandonarmo-nos completamente a verdade do Evangelho. Sem dúvida, a memória de Santo Agostinho e a recordação dos passos dados na história recente, inspiraram os trabalhos da Comissão Internacional Anglicano-Católica (ARCIC) reunida desde último dia 17/05, no mosteiro italiano de Bose. No comunicado final, divulgado hoje, a comissão composta por 18 teólogos católicos e anglicanos declarou que "aquilo que nos une é maior do que aquilo que nos divide" (palavras repetidas, no mesmo contexto do diálogo ecumênico, pelo Beato Papa João XXIII). O texto acrescenta ainda: Serão analisadas algumas questões particulares para esclarecer como as nossas duas comunhões abordam assuntos morais e como problemas que causam tensão para os anglicanos e católicos romanos podem ser resolvidos através da aprendizagem mútua.
Escrevo tudo isso com o propósito de sonhar junto com os meus Leitores. Já imaginaram a “Comissão Permanente”, composta por teólogos, representantes da hierarquia eclesial e... homossexuais? Parafraseando as palavras de João Paulo II, estamos de acordo que o momento é chegado de formar uma nova Comissão. A sua tarefa será a de continuar o trabalho já iniciado; de examinar, especialmente à luz das nossas respectivas opiniões, as principais diferenças doutrinais que ainda nos separam, em vista da sua eventual resolução; de estudar tudo o que impede o recíproco reconhecimento; e de recomendar que medidas hão de ser necessárias tomar quando, em base à nossa unidade na fé, formos capazes de prosseguir para o retorno a uma comunhão completa. Damo-nos perfeitamente conta de que a tarefa desta nova Comissão não será fácil, mas encoraja-nos a confiança que temos na graça de Deus. Enquanto continua este necessário trabalho de esclarecimento teológico, ela deve ser acompanhada pelo zeloso trabalho e pela fervorosa oração de todos os católicos, heterossexuais e homossexuais, pois eles precisam crescer na compreensão recíproca, no amor fraterno e no comum testemunho do Evangelho. Nessa ocasião, o Santo Padre, poderia repetir as palavras de seu grande predecessor, São Gregório Magno, escritas na ocasião daquela missão à Inglaterra: Cristo, o grão de trigo, caiu na terra e morreu para não reinar sozinho no céu. Por sua morte nós vivemos, por sua fraqueza nos fortalecemos, por sua paixão nos libertamos da nossa. Por seu amor procuramos (...) irmãos que desconhecíamos; por sua bondade, encontramos aqueles que procurávamos sem conhecer. (São Gregório Magno, Cartas).
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