Todos se lembram do caso de um policial que, durante o protesto dos professores no Rio, forjou a posse de morteiros para deter um jovem manifestante. Exceto a nota oficial da PM, todas as reações na mídia, nas redes sociais e em conversas particulares, são unânimes: é algo revoltante, vergonhoso, inaceitável e digno de punição. Certamente, os policiais recebem a formação profissional, inclusive a instrução sobre a conduta ética. Por outro lado, as situações extremas e estressantes, facilitam (ainda que não justifiquem) o fracasso moral, principalmente no caso de pessoas que, talvez, não tenham firmeza em sua própria estrutura psíquica, quem sabe, devido, por exemplo, às falhas na educação em casa. Não estou aqui para julgar as pessoas. Há instituições e autoridades para isso. Entretanto, gostaria de usar este exemplo como a introdução a outra questão que considero infinitamente mais grave, com todos os adjetivos já citados: revoltante, vergonhoso e inaceitável. Digo "infinitamente mais grave" porque não se trata de uns policiais despreparados que permitem a confusão externa tomar conta do seu interior. Falo de pessoas cultas, formadas em filosofia e teologia, conhecedores e adeptos (pelo menos assim se declaram) do Evangelho e dos mandamentos de Deus. Pessoas que sabem perfeitamente qual é o conteúdo do 8° Mandamento, ainda que tenham alguma obsessão doentia com o 6°...
Assisti - ou, melhor: tentei assistir - o programa do Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, fiel discípulo de Olavo de Carvalho e, também (suponho), de Jesus, sobre a "Ideologia de gênero". A minha dificuldade consistiu não apenas no fato de discordar de sua argumentação, mas também, em algum problema técnico do site que não permitiu (até agora) uma formatação melhor do vídeo [ATUALIZAÇÃO 07/10/2013: o programa editado está aqui]. O padre que gosta de usar a expressão "gayzismo", copiada do seu mestre Olavo de Carvalho, retrata o estudo (e a legislação) a respeito da identidade de gênero, como uma das mais poderosas armas da "ditadura gay(zista)", a mesma que tem por objetivo - segundo ele - a destruição da sociedade e da Igreja (através da destruição de família tradicional), bem como a introdução da "nova ordem mundial". Tudo isso tem o tom apocalíptico e, de fato, serve para difundir, ainda mais, a intolerância, em particular, a homofobia. O discurso do padre é eloquente e sempre inclui a citação de uma série de nomes e fontes internacionais. Essa eloquência, porém, não é capaz de ocultar o falso princípio que, ao ser detectado, desmascara a verdadeira intenção do ensinamento. Não é a defesa da família, nem da sociedade, mas sim, mais uma tentativa de desmoralizar as pessoas homossexuais, atribuindo a elas algo que não existe. É, justamente, como forjar o flagrante, como no caso daquele policial. Por isso digo: essa briga que o padre apresenta, não é minha. Eu não brigo por este "gender", até porque ele não existe, da forma apresentada por este padre.
Vou tentar explicar a questão de maneira mais breve possível. Para um estudo maior, recomendo assistir o discurso do padre e ler todos os materiais que ele indica. O resumo da aula encontra-se no texto, publicado junto ao vídeo. É uma espécie de panfleto, certamente preparado para os escudeiros do padre, para ser multiplicado e distribuído pelo Brasil afora (quem sabe, nas Paradas de orgulho gay[zista]). O título do panfleto, diga-se de passagem, pode ser perfeitamente aplicado, em resposta, a toda argumentação da aula: "Gênero" - Defina ou então não use! A palavra gênero foi politizada. Se ela for utilizada em um texto, deve ser definida para que todos possam estar conscientes do seu significado. Algumas feministas radicais usam "gênero" em contraposição ao "sexo". "Sexo" diz respeito à realidade biológica de masculino e feminino. "Gênero" diz respeito ao condicionamento social e às práticas culturais relacionadas com a masculinidade e a feminilidade. Os que defendem esta definição o fazem por crerem que todas as evidentes diferenças entre homem e mulher não são naturais, mas são produzidas pela "socialização opressiva de gênero" e a mulher será livre somente quando não seja obrigada a ser feminina por sua cultura. Além disso, creem que, enquanto o "sexo" é uma realidade fixa, o "gênero" é algo que se pode escolher. Esta interpretação é particularmente popular entre homossexuais e lésbicas [sic! - como se as lésbicas não fossem homossexuais]. Esta definição declara guerra à feminilidade natural.
No vídeo, o padre Paulo Ricardo, reforça esta afirmação: Na verdade, o que está por trás, é um outro conceito. O que está por trás é o fato que - segundo essas pessoas - o homem é uma massinha de modelar e você é construído como homem, ou é construída como mulher, ou é construído como homossexual, ou como lésbica, ou como transexual. Isto é uma questão de opção e não é sequer uma coisa fixa.
Quem não percebe, exatamente por trás deste discurso, a intenção de desmoralizar a luta GLBTTS pelos próprios direitos e pela dignidade, corre o risco de ser agredido, amanhã mesmo, em uma esquina qualquer, por um "católico" que - induzido ao erro - vai punir você, por ter escolhido ser gay. Afinal, a ira de Deus volta-se contra os infiéis. Certamente, ele não vai entender que você está sendo fiel a si mesmo, à sua identidade, ao seu gênero que, entretanto, não foi criado por você.
E quem pensa que a opinião deste padre é algo raro e individual, engana-se redondamente. Basta entrar nos sites "católicos" e conferir. Um deles, "Annales Historiae", publica o mesmo pensamento: A heterossexualidade está na base da complementariedade entre os homens e as mulheres. Mas outros preferem ver nisso um ponto de exploração, de dominação e de intolerância. Para combater esta situação, então eles trabalham incansavelmente para destruir o que eles consideram como um preconceito. (...) O indivíduo é intimado a escolher entre todas estas possibilidades (heterossexual feminino, heterossexual masculino, homossexual masculino, homossexualidade feminina, bissexualidade, transsexualidade e indiferenciado), com o direito fundamental de trocá-las, quando lhe apetece. (Obs.: Os conhecedores de língua portuguesa, ao menos em Portugal, sugerem que se use o termo "transexualidade" - com um "s")
É tão óbvia a falte de lógica na argumentação sobre a "opção" que, somente através de uma lavagem cerebral, é possível implantá-la na cabeça de quem quer que seja.
O Papa Bento XVI fez uma referência à "ideologia do gênero": [O rabino-chefe de França, Gilles Bernheim] cita o célebre aforismo de Simone de Beauvoir: «Não se nasce mulher; fazem-na mulher – On ne naît pas femme, on le devient». Nestas palavras, manifesta-se o fundamento daquilo que hoje, sob o vocábulo «gender - gênero», é apresentado como nova filosofia da sexualidade. De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente, enquanto até agora era a sociedade quem a decidia. (...) O homem contesta o fato de possuir uma natureza pré-constituída pela sua corporeidade, que caracteriza o ser humano. Nega a sua própria natureza, decidindo que esta não lhe é dada como um facto pré-constituído, mas é ele próprio quem a cria. De acordo com a narração bíblica da criação, pertence à essência da criatura humana ter sido criada por Deus como homem ou como mulher. Esta dualidade é essencial para o ser humano, como Deus o fez. É precisamente esta dualidade como ponto de partida que é contestada.
Talvez existam pessoas que pensam assim, ou movimentos que queiram difundir tal teoria, mas com certeza não são os homossexuais. Repito: nenhum homossexual acredita ter o poder de decidir sobre a sua própria orientação sexual. A sociedade, tampouco, tem esse poder, porque, se tivesse, já não existiria um homossexual sequer na face da terra, graças à pressão da sociedade, em sua maioria, homofóbica. Quanto à "natureza pré-constituída", sempre pensei que a Igreja tivesse pregado a superioridade da alma em relação ao corpo e das coisas espirituais em relação às materiais. Pois, muito mais do que a minha corporeidade, é a minha psíquica e a afetividade, que definem a direção da minha sexualidade. O que "pré-constituiu" a corporeidade daquela criança que nasceu com 4 pernas na Índia? Ou de outra que nasceu com 4 braços e 4 pernas? Que era a encarnação do deus Vishnu, como tantos afirmavam? Não! Foram realizadas várias cirurgias, para que essas pessoas pudessem ter a vida normal. Foi a corporeidade que impedia essa normalidade de viver. E o que dizer sobre a Letícia Lanz que nasceu com o corpo masculino, mas, em sua essência, sempre foi uma mulher? Ela mesma diz: Por décadas, tenho vivido com um nome que não corresponde à pessoa que eu sou e que, como qualquer outra pessoa, eu também desejaria poder mostrar ao mundo, com orgulho e dignidade, em todos as ocasiões.
Pelo que sei, a ciência ainda não possui métodos para consertar o interior de um ser humano. Consegue, porém - e com grande sucesso - adequar o corpo à identidade da pessoa. E todas as tentativas de "adequar" a sexualidade foram desastrosas.
Acrescento, no final, mais uma observação. Eu creio, assim como o Papa Bento XVI e como a maioria das pessoas não-heterossexuais, que a criatura humana foi feita por Deus nessa dualidade de homem e mulher. Ser gay, não anula o fato de ser homem, assim como ser lésbica, não anula a feminilidade. Essa é a situação das pessoas transgêneras, a quem devemos o respeito, merecido por cada ser humano. Elas também, assim como todos os seres humanos, não escolheram a sua sexualidade por mero capricho. A dualidade do ser humano contém muitas identidades. Deus que, em Jesus, ordenou: Dizei somente sim, se é sim; não, se é não. Tudo o que passa além disto vem do Maligno (Mt 5, 37), não criou o mundo preto e branco, mas sim, muito colorido. Tentar corrigir a obra do Criador, ou negar a sua diversidade, é um ato de estupidez e a manifestação de soberba que resulta em violência. É, exatamente, por dizer "sim" a Deus e a si mesmo, que as pessoas não-heterossexuais defendem a sua identidade e lutam por seus direitos.
A ilustração que ajuda compreender a diversidade do ser humano, encontrei no blog do Vinícius:
Tem certos atos, atitudes, conceitos que são revoltantes.
ResponderExcluirAbraços!
Pois é, Ro!
ExcluirAcho importante transformar esta revolta em força construtiva, a favor de todos os discriminados.
Obrigado pela visita!
Grande abraço!