A cena do Evangelho de Lucas (2, 22-40) é o conteúdo do quarto mistério gozoso do Rosário. Ainda que o ritual pertença à tradição judaica do Antigo Testamento, o texto leva-nos, por analogia, ao momento em que nós mesmos fomos apresentados ao Senhor, através do Batismo. Existe, sim, um ritual devocional à parte, também chamado de "apresentação" que os pais católicos realizam na igreja, ainda antes da cerimônia sacramental do Batismo. Não quero entrar aqui na polêmica católico-protestante a respeito do costume de batizar as crianças recém-nascidas. Meditando a apresentação do Menino Jesus no Templo em Jerusalém, recorro ao dia em que eu mesmo tinha sido admitido à comunidade cristã. Os contos familiares trazem a revelação sobre a ausência do meu pai naquele momento. Ele se dizia ateu e a minha mãe, com a minha avó e um casal de padrinhos, tomaram todos os cuidados para que ele não ficasse sabendo. Sendo assim, cresci - até uns 15 anos - com a lenda de eu não ter sido batizado. Quando tomei a decisão de me preparar para a I Comunhão, o tema do Batismo veio à tona. O padre que me dava umas aulas particulares (sim, nunca completei uma catequese regular), descobriu nos livros da paróquia de que, na verdade, fui batizado, com quase 1 ano de idade. Enfim... Todas essas coisas fizeram com que sempre me sentisse um tanto diferente em relação aos colegas da rua, da escola e, até mesmo, em relação ao meu irmão mais velho. De certa forma, o "ser diferente" sempre fez parte da minha (auto-) consciência e hoje vejo isso como algo providencial. Quando, finalmente, admiti a minha homossexualidade, não demorei tanto em questão de aceitá-la, como mais uma coisa na lista de componentes que me faziam - desde sempre - um ser diferente. Usei aqui os termos "admitir" e "aceitar", tentando apontar a diferença entre esses dois passos. Houve mais um passo, mais demorado e anterior aos dois que chamaria, talvez, de "intuição". Realmente (usando a expressão popular), desde que me entendo por gente, senti atração pelos rapazes. Passei (entre 13-15 anos) por uma fase de fetiche masoquista (sim, senhor) e - bem mais tarde - tive excelentes experiências de amor, vivido em forma de relacionamentos de até 3 anos. O fato de estar hoje solteiro, talvez se inscreva no conjunto de elementos do "ser diferente". É bom acrescentar aqui que a sensação de ser diferente, não se direciona necessariamente ao orgulho ("sou melhor do que os outros"), nem à baixa autoestima ("sou pior do que os outros"). Talvez - pelo menos nessa altura do campeonato - isso me ajude a olhar, com mais compreensão, a todos aqueles que, por qualquer motivo, estejam sendo tratados (ou se sintam) como diferentes. É quase como naquele slogan da Globo: "Ser diferente é normal".
E o que tudo isso tem a ver com a "Apresentação do Senhor", enquanto um mistério do Rosário? É assim que eu faço essa oração. Partindo de um texto, de uma cena, entro logo em reflexão sobe a vida, principalmente a minha. Os misteriosos personagens de Simeão e Ana, o amor de Maria e José, a sombra de Herodes e, sobretudo, a constante presença amorosa de Deus, repetiram se e ainda se repetem na minha vida. Aquilo que, nos olhos humanos, possa parecer apenas uma coincidência, na verdade revela-se como a sábia e terna providência de Deus. E como a apresentação - tanto no contexto judaico, quanto cristão - de fato é o ato de entrega e de consagração, recordo constantemente a verdade mais importante de toda a minha vida: Eu pertenço ao Senhor. Tudo o que sou, pertence a Ele. A minha homossexualidade pertence a Ele e nenhum padre, pastor ou quem quer que seja, vai me convencer do contrário. Nos períodos em que tive a graça (sim, a graça de Deus) de experimentar o mais profundo e verdadeiro amor - mesmo compartilhado com a pessoa do mesmo sexo - vivi a mais intensa e palpável revelação da divindade que, em sua essência, é o amor perfeito. Descobri na própria pele (e na própria alma) o que quer dizer que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Por mais que alguém chame isso de blasfêmia ou heresia, foi naquele tempo em que vivi o amor que realizei a minha mais plena consagração batismal a Deus.
Não posso deixar de mencionar a espada que - anunciada pelo velho Simeão - traspassou a alma de Maria. A mesma espada, em suas proporções próprias, fere a alma da minha mãe, assim como de todas as mães na face da terra. Sem dúvida, as mães de homossexuais, têm experimentado as dimensões dessa dor, desconhecidas por outras mães, embora a separação, a distância, o próprio momento em que o filho (-a) deixa a casa - tudo isso tenha sido a expressão desse misterioso desígnio de Deus, chamado "a espada", compartilhada por todas. As mães, por sua vez, são dotadas de uma incrível intuição, especialmente em relação aos filhos. Já devo ter falado sobre isso neste blog: embora nunca tenha realizado "aquela conversa" com a minha mãe, estou convencido de que ela sabe a respeito da minha homossexualidade. E me aceita, alás, ama, do jeito como sou. Louvado seja Deus por tudo isso!
Sobre a Apresentação do Senhor, leia também aqui.
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