A passagem do Evangelho de hoje (Mc 9, 41-50) já deu muita dor de cabeça aos pregadores (e aos seus ouvintes). Afinal, cortar ou não cortar a mão? O que é que Jesus quer dizer com isso? Até os mais radicais defensores de leitura da Bíblia ao pé da letra, ficam confusos diante destas palavras de Jesus. Acredito que a chave esteja na expressão repetida várias vezes no mesmo trecho: “é melhor” (e no caso da pedra de moinho amarrada ao pescoço, “melhor seria”). É ma mesma figura linguística que usamos na hora de declarar algo (ou alguém) como muitíssimo importante para nós. Apaixonado diz: “Eu prefiro morrer do que me separar de você”, pai ao filho: “se você me desobedecer mais uma vez, eu arranco a sua cabeça”, professor aos alunos: “se alguém colar, vou quebrar o seu braço” (há muitos outros exemplos que incluem atos de “arrancar cabelos”, “esfolar vivo”, “levar à lua” ou “mostrar paraíso”, etc.). Com outras palavras, é o uso proposital de exagero para chamar atenção e sensibilizar a consciência de outrem. Jesus sabia perfeitamente que no meio de seus discípulos havia (e ainda há!) indivíduos com a consciência torta e o coração endurecido. Sabia, também, que não é exatamente a mão, o pé ou o olho que levam alguém a pecar, pois estes são meros instrumentos e não autores (inventores) das maldades. Em outra ocasião o Senhor disse claramente: é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos, devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez. (Mc 7, 21-22; cf. Mt 15, 19) Por mais estranhas que pareçam, estas duras palavras de Jesus revelam o seu amor e a sua preocupação para conosco. Como se dissesse: “Meu filho, o pecado é um perigo grande e muito real! Se for o caso, eu prefiro ver você mutilado, de que fora da casa do meu Pai. Tome, portanto, muito cuidado!”. O que devemos cortar muitas vezes são as ocasiões do pecado e, às vezes, também, alguns relacionamentos. Li em algum lugar o comentário de um padre que associa a "ordem" de cortar a mão com os pecados sexuais. Coitado, deve ter sentido muito remorso pelo mau uso de sua mão. Por que não ler o contexto mais amplo da passagem? Jesus diz, um pouco antes: Quem vos der a beber um copo de água, porque sois de Cristo, não ficará sem receber a sua recompensa. (v. 41). O primeiro pecado cometido com a mão seria, então, mantê-la fechada (por aqui dizem “mão de vaca”), ou seja, omitir-se no dever de caridade fraterna. É, aliás, um delito muito frequente, inclusive nas tentativas de interpretar a Bíblia. Há milhares de cristãos que gostariam de cortar certas partes do corpo de homossexuais (como se a sexualidade estivesse presente apenas naquelas partes). Eu digo: corta a minha cabeça e arranca o meu coração, porque a homossexualidade está ali. Voltando à pedra do moinho amarrada ao pescoço, pergunto qual é o maior escândalo: dois homens que se abraçam e beijam ou todo tipo de intolerância, preconceito, desprezo e soberba que apresentam muitos seguidores de Cristo?
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