O que têm em comum os homossexuais e os defuntos, além do fato de que cada um dos seres humanos (hetero-, homo-, bi-, trans- e metrossexual), em algum momento, vai morrer e será, de fato, um defunto? Uma leitura atenta da legislação da Igreja (chamada também “Direito Canônico”) pode nos levar a conclusões interessantes. Os católicos mais velhos ainda se lembram de situações constrangedores e duplamente tristes de uma postura intransigente dos padres em relação ao sepultamento dos suicidas, bem como em questão de cremação do corpo (às vezes determinada previamente, no testamento, pelo próprio falecido). Não bastava a tristeza dos familiares causada pela perda de um ente querido, o ponto de vista da Igreja, enquanto instituição, agravava ainda mais o desespero deles. Vieram, então, as reformas promovidas pelo Concílio Vaticano II. Terminado em 1965, o Concílio foi sendo colocado em prática aos poucos. Entre os mais diversos assuntos, tinha sido revisto o ponto de vista acerca de suicídio e de cremação dos corpos. De fato, o Código de Direito Canônico, não menciona os suicidas e o Catecismo da Igreja Católica afirma: Distúrbios psíquicos graves, a angústia ou o medo grave da provação, do sofrimento ou da tortura podem diminuir a responsabilidade do suicida. (n° 2282) E acrescenta: A Igreja ora pelas pessoas que atentaram contra a própria vida. (n° 2283) Em relação à cremação dos corpos de defuntos o Código de Direito Canônico (Cân. 1176 § 3) afirma: A Igreja recomenda insistentemente que se conserve o costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido escolhida por motivos contrários à doutrina cristã. O comentário para este parágrafo esclarece: A disciplina da Igreja sobre a cremação de cadáveres, que por razões históricas era totalmente contrária, foi modificada [em 1963]. Com as modificações introduzidas pelo novo Ritual de Exéquias é possível realizar os ritos exequiais inclusive no próprio crematório, evitando porém o escândalo ou o perigo de idiferentismo religioso. (Código de Direito Canônico; Edições Loyola, São Paulo 2001; p. 297).
Voltando à pergunta inicial: o que têm a ver os homossexuais com o sepultamento de suicidas ou com a cremação dos corpos? A chave da resposta está no texto acima: A disciplina da Igreja (...), que por razões históricas era totalmente contrária, foi modificada. Hoje em dia, a disciplina da Igreja é totalmente contrária, por exemplo, à união estável entre as pessoas do mesmo sexo, à Comunhão Eucarística dos homossexuais que vivem um relacionamento homoerótico [em breve voltarei a este assunto], à adoção de filhos pelos casais homossexuais, à admissão dos gays ao sacerdócio, etc.
Sejam razões históricas, culturais, teológicas, morais ou outras, a Igreja – ainda que demoradamente – modifica a sua disciplina. Citei aqui apenas dois exemplos, mas podemos procurar mais: a posição sobre os escravos, negros, mulheres, sobre a Terra que gira em torno do Sol e não o contrário ou, então, a opinião modificada sobre Galileu* ou Giordano Bruno e tantos outros personagens da história. Tendo em vista o fato de serem necessários séculos entre a condenação e a reabilitação de Galileu, podemos ficar moderadamente animados. Talvez não aconteça em nossa geração (embora pareça que agora o ritmo destas “descobertas” esteja um pouco mais acelerado), mas pelo menos não precisamos ter aquela sensação de um colapso total ou de estarmos numa rua sem saída. Sem dúvida, é grande e importante a contribuição da ciência que, unida a uma reflexão séria de mentes abertas, produz algumas modificações.
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*LEITURA ADICIONAL:
Profundas transformações sociais aconteceram nos últimos quinhentos anos, durante os quais a compreensão da natureza da matéria e da estrutura do universo passou por importantes revisões. Não há dúvida de que mais revisões estão por vir. Tais rupturas podem ser penosas quando se tenta atingir uma síntese confortável entre a ciência e a fé, principalmente se a Igreja se ligar a uma visão anterior das coisas e incorporar isso em seu sistema de crenças fundamentais. A harmonia de hoje pode ser a discórdia de amanhã. Nos séculos XVI e XVII, Copérnico, Kepler e Galileu (que acreditavam em Deus com muita convicção) desenvolveram uma ideia que os foi atraindo aos poucos: a de que o movimento dos planetas só poderia ser compreendido de forma adequada se a Terra se movesse em torno do Sol, em vez de o contrário. (...) Em princípio, muitos da comunidade científica não ficaram convencidos. Entretanto, ao final, os dados e a consistência das previsões da teoria foram aceitos até pelo mais cético dos cientistas. A Igreja Católica, contudo, sustentou sua oposição com firmeza, alegando que tal ponto de vista era incompatível com as Sagradas Escrituras. Olhando em retrospectiva, fica claro que se basear na Bíblia para fazer tais alegações é uma atitude bastante limitada; contudo, esse confronto alastrou-se durante décadas e causou, no fim das contas, danos consideráveis tanto à ciência quanto à Igreja. (Francis S. Collins, “A linguagem de Deus”; Editora Gente; São Paulo, 2007; p. 66-67)
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