Os sonhos sempre têm algo de louco. Umas misturas sinistras e cenas esquisitas. Foi assim também desta vez...
Eu estava numa fila enorme de gente que aguardava o atendimento em um guichê. Tratava-se de pegar uma senha para entrar no imponente portão que se encontrava no centro daquele lugar misterioso. O guichê com aquela fila estava ao lado direito do portão. Ao lado esquerdo havia mais 5 ou 6 guichês semelhantes, mas por lá passavam apenas algumas pessoas e só de vez em quando. Parecia-me uma divisão entre os privilegiados e os "comuns", assim como no banco ou, melhor, nos aeroportos europeus, onde há uma entrada especial para os cidadãos-membros da UE e outra para o resto do mundo. Neste sentido, eu estava na fila dos comuns, ou do "resto do mundo" - essa foi a minha impressão inicial. Não me senti, entretanto, tão incomodado assim, pois o ambiente todo tinha o aspecto, digamos, místico. Um ser misterioso (que depois identifiquei como o próprio Arcanjo Miguel), portando a espada brilhante, sobrevoava a nossa fila. Um outro parecido (certamente Gabriel), circulava por toda a extensão da fila e conversava com os mais impacientes. O terceiro (Rafael) tinha o aspecto de enfermeiro e tentava distribuir alguns remédios às pessoas na fila. No próprio guichê estava sentado um senhor de idade mais ou menos avançada. Se não fosse a sua aparência de certo cansaço, diria que tratava os clientes com a incansável paciência, explicando vagarosamente algumas coisas a cada pessoa. Ele ficava visivelmente triste ao mandar alguém até o final da fila o que acontecia com bastante frequência.
Fiquei meio confuso, então decidi conversar com alguém da fila. Bem ao meu lado estava um senhor vestido de batina preta, enfeitada com os botões vermelhos e outros detalhes da mesma cor. Apesar de sua aparência, digamos, pomposa e um tanto antipática (o seu rosto avermelhado estava coberto de suor e ele todo exalava um cheiro de incenso), decidi puxar o assunto com ele...
- "Esta aqui é a fila dos cristãos" - disse ele. - "Quem vai nos atender e o próprio São Pedro. O Arcanjo Miguel sobrevoa a fila, porque toda hora surge uma briga entre católicos e protestantes, ortodoxos e católicos gregos, entre católicos tradicionalistas e carismáticos, dizimistas e agentes de pastoral, sem falar dos lefebvristas, sedevacantistas e aqueles da teologia da libertação, além dos pentecostais, veterocatólicos, anglicanos, maronitas, metodistas, testemunhas de Jeová e assim por diante.."
O meu interlocutor (monsenhor e capelão de Sua Santidade) teve que interromper a sua explicação porque logo atrás da gente começou uma discussão entre dois clérigos. O primeiro, de batina preta, dirigindo-se ao companheiro à esquerda, barbudo e vestido de um hábito marrom, disse: - "Ó, irmão capuchinho! Você sabia que Judas também usava a barba?". O outro replicou: - "Meu amado irmão jesuíta! Se Judas usava a barba, eu não sei dizer, mas com certeza ele pertencia à companhia de Jesus..."
O religioso ainda estava falando quando um pequeno grupo de mulheres entrou na sala e dirigiu-se aos guichês à esquerda, totalmente vazios. Todas elas pareciam ter saído de um incêndio: as suas roupas estavam rasgadas e sentiu-se em toda parte um forte cheiro de queimado. As mulheres foram atendidas rapidamente e na mesma hora entraram pelo portão. - "São as bruxas queimadas por ordem da Inquisição" - disse o monsenhor. - "Você tinha que ver as bichinhas e os travecos, as drag-queens e as sapatonas" - continuou. - "Entraram ainda mais rápido! Olha lá, tá vendo? O homem-bomba no maior bate-papo com o kamikaze japonês da II Guerra Mundial! Eles tem o atendimento vip." Na mesma hora passaram por nós uns monges tibetanos murmurando algumas mantras, judeus ortodoxos, hindus e animistas. Depois apareceram os seguidores de candomblé, as pessoas com o barquinho azul e a imagem de Iemanjá, umas ciganas com as cartas de taró... Todo mundo seguiu aos guichês à esquerda e entrou pelo portão.
- "Mas quem são os atendentes de lá?" - perguntei. - "E por que é que nós temos só um e eles têm tantos?"
O monsenhor disse: - "Lá atendem os magos do Oriente. Olha isso: vem o cracudo, o tatuado, vem gente que acredita nos signos, os divorciados e recasados, comunistas e ateus... e todos entram! Vê se pode isso! Quando reclamei de uns viadinhos suicidas, São Gabriel me repreendeu e disse que eram mártires do preconceito."
- "Uê, sempre pensei que foram três reis do Oriente" - repliquei. - "O Evangelho não diz que eram três, nem que tenham sido reis. Diz que alguns magos vieram do Oriente... logo os magos, poxa" - desabafou o monsenhor...
O mais impressionante (e irritante) era o fato de que a nossa fila estava parada, havia muito tempo, enquanto ao lado esquerdo tudo corria muito rápido e sempre com o ar de alegre leveza. Mas nem pude observar aquilo por muito tempo, porque, de repente, o Arcanjo Miguel passou de voo rasante logo acima de nossas cabeças, dirigindo-se ao final da fila, onde as freiras vestidas de hábito começaram a briga com outras freiras que não usam mais o hábito...
- "Que loucura!" - pensei.
- "Não é loucura" - sussurrou no meu ouvido o Arcanjo Gabriel - "é a Epifania!"...
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