A
jurisprudência é o conjunto das soluções dadas pelos tribunais às
questões de Direito. A sua função principal é a adaptação da
lei às ideias e aos costumes contemporâneos. A jurisprudência
nasceu com o Common law inglês, no qual o direito é criado e
aperfeiçoado pelos juízes. Uma decisão a ser tomada num caso
depende das decisões adotadas nos casos anteriores e afeta o direito
que será aplicado em casos futuros. A cinematografia
norte-americana, com certa frequência, ajuda-nos a compreender
melhor como funciona o Common law. São aqueles advogados
que desesperadamente estudam os processos antigos para encontrar a
solução de um caso de outrora que seja útil aos seus clientes. O
argumento que diz "uma vez, o caso semelhante, foi resolvido
assim", é capaz de convencer o juiz.
Será
que o Rei dos reis e Juiz dos juízes segue, também, algum tipo de
jurisprudência? Segue, sim e podemos dizer que ela é, no mínimo,
bastante curiosa. As leituras litúrgicas de ontem fornecem para nós
alguns dos inúmeros exemplos bíblicos. Refiro-me aos textos da
terça-feira da 2ª semana do tempo comum (1Sm 16, 1-13; Sl 88; Mc 2,
23-28). No primeiro texto temos o profeta Samuel que vem transmitir a
voz de Deus, portanto, a sua ordem e a sua lei. Um detalhe chamou a
minha atenção. Antes de tudo, Deus orientou assim o seu servo: Eu
te mostrarei o que deves fazer e tu ungirás a quem eu te
designar (v. 2). Depois Samuel purificou Jessé e
seus filhos e convidou-os para o sacrifício (v. 5). Como se
sabe, o ritual de mais diversas purificações e associado a ele
conceito da impureza fazem parte da cultura e da mentalidade do povo
de Israel, inclusive de sua legislação. Uma sociedade teocrática
não distingue muito claramente a origem das leis vigentes e, para
facilitar as coisas, justifica os seus comportamentos com a ideia da
obediência a Deus, ainda que nem sempre tenha acertado o seu
discernimento. Mostram isso as precipitações mentais de Samuel que,
como um escolhido do Senhor, vivia ouvindo a voz de Deus. Percebemos,
porém, que ele escutava igualmente as dicas de sua lógica humana.
Em alguns momentos parecia até um duelo de vozes: Certamente
é este o ungido do Senhor! - Não! Não é este! Quando
acabou a fila dos candidatos, surgiu uma questão óbvia: Estão
aqui todos os teus filhos? Pois é, havia mais um, mas quem
teria a ideia de imaginar o caçula como o futuro rei de Israel? E o
Senhor que acabava de dizer a Samuel para não se deixar enganar pela
aparência, desta vez faz questão de notar que Davi era
ruivo, de belos olhos e formosa aparência. Quando chegou, então,
o bonitinho, Deus disse ao profeta: Levanta-te, unge-o: é
este! Samuel, é claro, obedeceu na mesma hora e nem teve a
ousadia de questionar: Uê, Senhor, e a purificação? Ele
teria que ser purificado antes, porque é assim que manda a Tua
lei! Se tivesse tal coragem, certamente teria recebido a
mesma resposta que ouviu, séculos mais tarde, não menos ungido
Apóstolo Pedro: Não chames de impuro o que Deus tornou
puro! (At 10, 15).
O
mesmo elemento da jurisprudência de Deus, isto é, a exceção
(ou a suspensão), percebemos ainda mais nitidamente no texto do
Evangelho proposto para o mesmo dia. É o típico exemplo do Common
law, aplicado pelo próprio Jesus. Caminhando por uns campos de
trigo, os discípulos de Jesus arrancaram algumas espigas para comer,
o que não seria tão grave se não fosse o dia de sábado. De um
lado, a lei de Deus obrigava os camponeses a deixarem um feixe de
trigo "esquecido" no campo durante a colheita, para que os
transeuntes necessitados pudessem comer (cf. Dt 24, 19). Afinal, Deus
é Amor e se preocupa com os pobres. Por outro lado, no sábado não
se podia fazer trabalho algum. Os fariseus, membros ilustres da elite
religiosa do povo, lembraram-se, obviamente, da proibição e não do
amor, o que observamos igualmente em todas as discussões travadas
por eles com Jesus: Por que eles fazem em dia de sábado o
que não é permitido? (Mc 2, 24). Jesus recorre a um
precedente (exatamente como os advogados que usam a lógica do Common
law): Por acaso, nunca lestes o que Davi e seus
companheiros fizeram quando passaram a necessidade e tiveram fome?
Como ele entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo
sacerdote, comeu os pães oferecidos a Deus e os deu também aos seus
companheiros? No entanto, só aos sacerdotes é permitido comer esses
pães. (v. 25-26)
Mais
ou menos neste sentido podemos dizer: Por acaso nunca lestes o que
Jesus fez quando um centurião romano o pediu para curar seu servo
que muito provavelmente era, também, o seu amante? Como o Senhor não
somente curou o doente sem questionar a relação dos dois, mas ainda
elogiou a fé daquele centurião? (cf. Mt 8, 5-13 e Lc 7, 1-10). Ou,
quando Filipe, um dos sete diáconos, anunciou a fé ao eunuco etíope
e, sem questionar a sua condição de esterilidade (ou, quem sabe,
homossexualidade, o que era bastante comum nos haréns da época e
nos palácios de rainhas), ministrou-lhe o Sacramento do Batismo?
(cf. At 8, 29-39). Ou, então, quando já mencionado aqui Pedro, o
primeiro Papa (talvez ante-Papa, sem confundir com qualquer
anti-Papa, mas tendo em vista que os Papas são seus sucessores),
chegou à conclusão definitiva: Deus me mostrou que não se
deve dizer que algum homem é profano ou impuro. (At 10, 28)
A
"jurisprudência" de Deus baseia-se no amor. Os teólogos e
a doutrina oficial da Igreja afirmam que Deus é imutável, mas
também que é insondável. Quando, então, alguém afirma que isso
ou aquilo é assim e não pode ser diferente, pois provém da lei de
Deus, nem sempre tem razão. Não valeu a pena brigar (em nome de
Deus) com os cientistas (e queimar alguns deles na fogueira), só
porque afirmavam que a Terra é redonda. Em um contexto mais amplo
resume esta verdade a jornalista e escritora Martha Medeiros:
Somos
vigorosamente contra ou a favor, como se de nossas posições
dependesse nossa vida. E chegam a ser inocentes nossas tentativas de
compreender a nós mesmos e ao mundo. Particularmente, gosto muito
dessa busca, mas sem perder a consciência de que, onde quer que eu
chegue, ainda estarei a milhões de anos-luz da compreensão
absoluta. Ainda bem. O que viria depois da compreensão
absoluta? ("Causa e efeito" em Revista O Globo,
22. 12. 2013; p. 14).
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