ESTE BLOG NÃO POSSUI CONTEÚDO PORNOGRÁFICO

Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



_____________________________________________________________________________



22 de janeiro de 2014

Jurisprudência divina



A jurisprudência é o conjunto das soluções dadas pelos tribunais às questões de Direito. A sua função principal é a adaptação da lei às ideias e aos costumes contemporâneos. A jurisprudência nasceu com o Common law inglês, no qual o direito é criado e aperfeiçoado pelos juízes. Uma decisão a ser tomada num caso depende das decisões adotadas nos casos anteriores e afeta o direito que será aplicado em casos futuros. A cinematografia norte-americana, com certa frequência, ajuda-nos a compreender melhor como funciona o Common law. São aqueles advogados que desesperadamente estudam os processos antigos para encontrar a solução de um caso de outrora que seja útil aos seus clientes. O argumento que diz "uma vez, o caso semelhante, foi resolvido assim", é capaz de convencer o juiz.

Será que o Rei dos reis e Juiz dos juízes segue, também, algum tipo de jurisprudência? Segue, sim e podemos dizer que ela é, no mínimo, bastante curiosa. As leituras litúrgicas de ontem fornecem para nós alguns dos inúmeros exemplos bíblicos. Refiro-me aos textos da terça-feira da 2ª semana do tempo comum (1Sm 16, 1-13; Sl 88; Mc 2, 23-28). No primeiro texto temos o profeta Samuel que vem transmitir a voz de Deus, portanto, a sua ordem e a sua lei. Um detalhe chamou a minha atenção. Antes de tudo, Deus orientou assim o seu servo: Eu te mostrarei o que deves fazer e tu ungirás a quem eu te designar (v. 2). Depois Samuel purificou Jessé e seus filhos e convidou-os para o sacrifício (v. 5). Como se sabe, o ritual de mais diversas purificações e associado a ele conceito da impureza fazem parte da cultura e da mentalidade do povo de Israel, inclusive de sua legislação. Uma sociedade teocrática não distingue muito claramente a origem das leis vigentes e, para facilitar as coisas, justifica os seus comportamentos com a ideia da obediência a Deus, ainda que nem sempre tenha acertado o seu discernimento. Mostram isso as precipitações mentais de Samuel que, como um escolhido do Senhor, vivia ouvindo a voz de Deus. Percebemos, porém, que ele escutava igualmente as dicas de sua lógica humana. Em alguns momentos parecia até um duelo de vozes: Certamente é este o ungido do Senhor! - Não! Não é este! Quando acabou a fila dos candidatos, surgiu uma questão óbvia: Estão aqui todos os teus filhos? Pois é, havia mais um, mas quem teria a ideia de imaginar o caçula como o futuro rei de Israel? E o Senhor que acabava de dizer a Samuel para não se deixar enganar pela aparência, desta vez faz questão de notar que Davi era ruivo, de belos olhos e formosa aparência. Quando chegou, então, o bonitinho, Deus disse ao profeta: Levanta-te, unge-o: é este! Samuel, é claro, obedeceu na mesma hora e nem teve a ousadia de questionar: Uê, Senhor, e a purificação? Ele teria que ser purificado antes, porque é assim que manda a Tua lei! Se tivesse tal coragem, certamente teria recebido a mesma resposta que ouviu, séculos mais tarde, não menos ungido Apóstolo Pedro: Não chames de impuro o que Deus tornou puro! (At 10, 15).

O mesmo elemento da jurisprudência de Deus, isto é, a exceção (ou a suspensão), percebemos ainda mais nitidamente no texto do Evangelho proposto para o mesmo dia. É o típico exemplo do Common law, aplicado pelo próprio Jesus. Caminhando por uns campos de trigo, os discípulos de Jesus arrancaram algumas espigas para comer, o que não seria tão grave se não fosse o dia de sábado. De um lado, a lei de Deus obrigava os camponeses a deixarem um feixe de trigo "esquecido" no campo durante a colheita, para que os transeuntes necessitados pudessem comer (cf. Dt 24, 19). Afinal, Deus é Amor e se preocupa com os pobres. Por outro lado, no sábado não se podia fazer trabalho algum. Os fariseus, membros ilustres da elite religiosa do povo, lembraram-se, obviamente, da proibição e não do amor, o que observamos igualmente em todas as discussões travadas por eles com Jesus: Por que eles fazem em dia de sábado o que não é permitido? (Mc 2, 24). Jesus recorre a um precedente (exatamente como os advogados que usam a lógica do Common law): Por acaso, nunca lestes o que Davi e seus companheiros fizeram quando passaram a necessidade e tiveram fome? Como ele entrou na casa de Deus, no tempo em que Abiatar era sumo sacerdote, comeu os pães oferecidos a Deus e os deu também aos seus companheiros? No entanto, só aos sacerdotes é permitido comer esses pães. (v. 25-26)

Mais ou menos neste sentido podemos dizer: Por acaso nunca lestes o que Jesus fez quando um centurião romano o pediu para curar seu servo que muito provavelmente era, também, o seu amante? Como o Senhor não somente curou o doente sem questionar a relação dos dois, mas ainda elogiou a fé daquele centurião? (cf. Mt 8, 5-13 e Lc 7, 1-10). Ou, quando Filipe, um dos sete diáconos, anunciou a fé ao eunuco etíope e, sem questionar a sua condição de esterilidade (ou, quem sabe, homossexualidade, o que era bastante comum nos haréns da época e nos palácios de rainhas), ministrou-lhe o Sacramento do Batismo? (cf. At 8, 29-39). Ou, então, quando já mencionado aqui Pedro, o primeiro Papa (talvez ante-Papa, sem confundir com qualquer anti-Papa, mas tendo em vista que os Papas são seus sucessores), chegou à conclusão definitiva: Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro. (At 10, 28)

A "jurisprudência" de Deus baseia-se no amor. Os teólogos e a doutrina oficial da Igreja afirmam que Deus é imutável, mas também que é insondável. Quando, então, alguém afirma que isso ou aquilo é assim e não pode ser diferente, pois provém da lei de Deus, nem sempre tem razão. Não valeu a pena brigar (em nome de Deus) com os cientistas (e queimar alguns deles na fogueira), só porque afirmavam que a Terra é redonda. Em um contexto mais amplo resume esta verdade a jornalista e escritora Martha Medeiros:

Somos vigorosamente contra ou a favor, como se de nossas posições dependesse nossa vida. E chegam a ser inocentes nossas tentativas de compreender a nós mesmos e ao mundo. Particularmente, gosto muito dessa busca, mas sem perder a consciência de que, onde quer que eu chegue, ainda estarei a milhões de anos-luz da compreensão absoluta. Ainda bem. O que viria depois da compreensão absoluta? ("Causa e efeito" em Revista O Globo, 22. 12. 2013; p. 14).

Nenhum comentário:

Postar um comentário