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Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



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28 de agosto de 2013

O direito de existir


 
Como de costume, o contexto desta reflexão é, digamos, multifocal. De um lado a comemoração dos 50 anos do discurso de Martin Luther King ("I have a dream"), de outro, a memória litúrgica de Santo Agostinho e, sempre como uma espécie de pano de fundo, a experiência de um homossexual que busca as respostas em Deus. Há uma analogia entre toda a batalha contra o racismo (simbolizada na trajetória e no martírio de Martin Luther King) e a luta, ainda em andamento, pelos direitos de GLBTT. Entre estes direitos destaca-se o reconhecimento da própria existência: "Sim, nós existimos, somos reais, ainda que diferentes, mas, justamente pelo fato de existir, temos o direito de sermos conhecidos e respeitados". Bem, no caso da luta contra o racismo, ninguém negava a existência real das pessoas com a cor da pele diferente daquela mais clara. O problema era (e, para muitos, infelizmente, ainda é) a ideia de que teriam sido seres inferiores, por isso não mereceriam gozar dos mesmos direitos. Em relação aos "não-heterossexuais", há quem duvide em sua existência, mas isso deve ter sido motivado pela burrice, ou má vontade (todas aquelas teorias sobre um "passageiro estado de confusão emocional" e outras ainda mais bizarras). Em geral, porem, já podemos dizer que a nossa existência é admitida. Agora a batalha é pelos direitos, pela igualdade, pelo respeito - tudo isso, como o primeiro grau para, finalmente, subir à altura de uma convivência verdadeiramente fraterna. Resumindo: quero que você admita o fato da minha existência, depois que você não me despreze, a fim de podermos, futuramente, conviver no estado de verdadeira harmonia, paz e - como Cristo quer - no amor mútuo.
 
É justamente neste contexto que trago aqui alguns trechos de uma grande obra de Santo Agostinho, "O livre arbítrio" (o arquivo em pdf, com o texto inteiro, pode ser lido aqui).
 
A ideia inicial é esta: "Todos os seres, pelo fato de existirem, são, com todo direito, dignos de serem apreciados. Porque, pelo simples fato de existirem, são bons" (Livro III, cap. 7, n. 21). Um pouco mais adiante, Agostinho continua: só a inveja poderia levar a dizer: "Esta realidade não deveria existir assim". Ou ainda: "Aquela deveria ser de outro modo". (...) E aquele que dissesse: "Esta aqui não deveria existir" seria igualmente mau e invejoso, visto que, ao recusar-lhe a existência, ver-se-ia forçado a considerar tal outra menos perfeita. Seria, por exemplo, como se dissesse: "A lua não deveria existir". Ora, a claridade de uma candeia que seja, ainda que bem inferior, continua bela em seu gênero e agradável, quando as trevas cobrem a terra, e assim mostra-se ela bem apropriada aos afazeres noturnos. Devido a tudo isso, meu interlocutor deve bem confessar que a referida candeia é digna de ser louvada em sua humilde limitação. Negá-lo, seria próprio de um doido ou de um obstinado. Como, pois, ousar dizer convenientemente: "A lua não deveria existir entre os seres", quando ao dizer: "A candeia não deveria existir", essa pessoa já é digna de zombaria? E caso não afirmasse: "A lua não deveria existir", mas sim: "Deveria ser semelhante ao sol", ela não se daria conta de que esse desejo reduz-se a : "A lua não deveria existir, mas deveria haver dois sóis". Nisso engana-se duplamente, porque acrescentar ao mesmo tempo nova perfeição às coisas que já são perfeitas em sua natureza é desejar como que outro sol. E diminuir a sua perfeição é como desejar eliminar a lua.
Talvez meu interlocutor dirá, a propósito desse exemplo, que ele não se lamenta de modo algum a respeito da lua, porque o esplendor menor que ela possui não é de natureza a torná-la infeliz. Mas que é a respeito das almas que ele se contrista. Não devido à obscuridade delas, mas, precisamente, por causa do seu estado de desgraça. Seja, mas que ele considere então, atentamente, que se a lua não é infeliz por sua opacidade, do mesmo modo o sol não é feliz por seu brilho. Pois, ainda que sendo corpos celestes, são contudo corpos e, pelo que diz respeito à luz, são capazes de serem percebidos por nossos olhos corporais: nunca, porém, os corpos como corpos podem sentir felicidade ou desdita, ainda que possam ser corpos de seres felizes ou infelizes. Mas a comparação tirada desses corpos luminosos ensina-nos o seguinte: contemplando a diversidade dos corpos, vês uns mais brilhantes do que outros, mas estarias no erro ao pedir a supressão dos mais obscuros ou o nivelamento com os mais brilhantes. Pois, se os consideras a todos em sua relação com a perfeição do universo, quanto mais eles diferem de brilho entre si, mais te é fácil constatar que todos eles existem. Aliás, o conjunto não te parece perfeito, senão porque coexistem corpos mais nobres com outros mais humildes. Considera, por aí, igualmente, a diversidade existente nas almas e encontrarás como compreender que essa miséria da qual te lamentas também possui seu papel na perfeição do universo. 
(Santo Agostinho, "O livre arbítrio"; Livro III, cap. 9, n. 24-25)
 

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