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Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



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4 de março de 2014

O prelúdio do Sínodo


O recente consistório (a reunião dos cardeais com o Papa) não faz parte do Sínodo dos Bispos, mesmo assim, ganhou o "sobrenome" de "Consistório da Família" e, com razão, a sua leitura está sendo feita, justamente, no contexto do Sínodo (previsto para o próximo mês de outubro). O portal ihu.unisinos traz o longo texto do discurso, feito durante o consistório pelo cardeal Walter Kasper a pedido do Papa Francisco e o comentário inicial da redação traz a expressão "ouverture", fazendo alusão à introdução a uma peça musical (assim mesmo como o título desta reflexão). Ainda dentro dessa analogia, posso dizer que a palestra do cardeal Kasper é uma "ópera" ou talvez "sinfonia" em favor da família e de sua forma bíblico-tradicional. Sim, temos algumas novidades, quase dissonâncias, quando se trata de propostas relacionadas à admissão de (algumas) pessoas divorciadas e recasadas aos sacramentos. De acordo com outro cardeal alemão, Reinhard Marx, o discurso de Kasper despertou fortes oposições por parte de muitos participantes do consistório.

O texto é longo e requer (e, eu acho, merece) uma atenção redobrada. O meu contexto de leitura é a perspectiva LGBT e, por este ângulo, algumas afirmações destacam-se de maneira especial:

"A instituição da família é, embora com todas as diferenças particulares, a ordem original da cultura da humanidade. Não pode ter um bom sucesso estabelecer hoje uma nova definição da família, que contradiga ou mude a tradição cultural de toda a história da humanidade".

"Não nos tornamos homem ou mulher através da respectiva cultura, como afirmam algumas opiniões recentes. O ser homem e o ser mulher estão fundamentados ontologicamente na criação. A igual dignidade da sua diversidade explica a atração entre os dois, cantada nos mitos e nos grandes poemas da humanidade, assim como no Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. Querer torná-los iguais por ideologia destrói o amor erótico. A Bíblia entende esse amor como união para se tornar uma só carne, isto é, como uma comunidade de vida, que inclui sexo, eros, além da amizade humana ([Gn] 2, 14). Nesse sentido completo, o homem e a mulher foram criados pelo amor e são imagem de Deus, que é amor (1 J0 4, 8)".

Enquanto todas as esperanças (de uma percepção nova do amor entre as pessoas do mesmo sexo) parecem mortas e sepultadas, brotam no mesmo texto - a meu ver - alguns modestos sinais positivos, ainda que de forma indireta. O primeiro deles é a antiga e clássica relação entre o matrimônio e o celibato. O cardeal Kasper lembra:

"Como o celibato livremente escolhido se torna uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, o matrimônio também, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social, mas sim uma livre escolha. Sobretudo as mulheres não casadas são agora reconhecidas mesmo sem um marido. Assim, o matrimônio e o celibato se valorizam e se sustentam mutuamente, ou ambos juntos entram em uma crise, como infelizmente estamos experimentando agora".

Por analogia, podemos dizer que o casamento entre as pessoas do mesmo sexo que também já se tornou uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, faz com que a união matrimonial entre um homem e uma mulher, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social. Assim, o casamento heterossexual e a união homoafetiva se valorizam e se sustentam mutuamente. A visão do casamento igualitário como uma ameaça, ou um atentado contra a família tradicional, não tem mais razões para existir.

O outro sinal de esperança, pequeno e indireto, vem da abordagem de uma das situações, tradicionalmente tidas como irregulares, agora, porém, apresentada em uma ótica diferente. É a questão daqueles que, tendo o seu primeiro matrimônio sacramental desfeito, estão vivendo a "segunda união", baseada no contrato civil. Em primeiro lugar, o palestrante refere-se, de maneira mais generalizada, às "famílias desagregadas" e diz:

"Não basta considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e devemos - como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) - considerar a situação a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda".

Depois de recordar as antigas e clássicas tentativas de encontrar a solução, principalmente a avaliação das possibilidades de constatar a eventual nulidade do casamento religioso (e, consequentemente, promover a "santificação" da união existente), o cardeal Kasper lança uma nova proposta que diz respeito aos casais que não têm essa possibilidade, ou seja, àqueles que continuam sendo considerados "irregulares". Eu entro aqui, com a observação de que o meu casamento (caso exista um candidato que se aventure para tal façanha) também seria considerado irregular perante a Igreja (pois seria com um homem!) e sem chance de ser elevado ao nível do Sacramento do Matrimônio. Segundo os critérios propostos pelo cardeal, porém, nós dois, tendo cumprido certas condições, seríamos admitidos à Comunhão Eucarística, a não ser que a minha lógica esteja falhando.

Antes de chegar aos pontos concretos, o cardeal Kasper polemizou com a ideia (sustentada, inclusive, pelo Papa Bento XVI) sobre a "comunhão espiritual" que - unicamente - seria acessível aos casais "irregulares":

"De fato, quem recebe a comunhão espiritual é uma coisa só com Jesus Cristo; como pode, então, estar em contradição com o mandamento de Cristo? Por que, portanto, não pode receber também a comunhão sacramental? Se excluímos os cristãos divorciados em segunda união que estão dispostos a se aproximar deles [sacramentos] e os encaminhamos à vida de salvação extrassacramental [sic!], talvez não colocamos em discussão a estrutura fundamental sacramental da Igreja? Então, de que servem a Igreja e os sacramentos? Não pagamos um preço alto demais com essa resposta? Alguns defendem que justamente a não participação na comunhão é um sinal da sacralidade do sacramento. A pergunta que se coloca em resposta é: não seria talvez uma instrumentalização da pessoa que sofre e pede ajuda se fazemos dela um sinal e uma advertência para os outros? Deixamo-la sacramentalmente morrer de fome para que os outros vivam?".

Após essa premissa dramática, o palestrante passou para os pormenores da proposta:

"Um divorciado em segunda união:
1) se se arrepende do seu fracasso no primeiro matrimônio;
2) se esclareceu as obrigações do primeiro matrimônio, se definitivamente excluiu que volte atrás;
3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com o novo matrimônio civil;
4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades o segundo matrimônio a partir da fé e para educar os próprios filhos na fé;
5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação,
- devemos ou podemos negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?"

Entro aqui, de novo, com as minhas analogias:

Uma pessoa homossexual:
1) se se arrepende do seu fracasso nas tentativas de estabelecer uma união heterossexual, ou até mesmo se arrepende por ser homossexual, ou seja, admite o fato de que tal condição não depende de sua vontade livre (tipo: "ah, como seria mais fácil, eu ser uma pessoa heterossexual, mas, infelizmente, isso não depende de mim");
2) se esclareceu as obrigações do casamento com uma pessoa do sexo oposto e se excluiu definitivamente a possibilidade de tal casamento;
3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com a união homoafetiva;
4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades a união homoafetiva a partir da fé e para educar na fé os filhos que adotou;
5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação,
- a Igreja deve ou pode negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?

O cardeal parece ler os meus devaneios e logo acrescenta uma misteriosa advertência:

"Um casamento civil como descrito com critérios claros deve ser diferenciado de outras formas de convivência 'irregular' como os casamentos clandestinos, os casais de fato, sobretudo a fornicação e os chamados casamentos selvagens [sic!]. A vida não é só branco e preto; de fato, há muitas nuances". Bem, fiquei na dúvida: onde é que eu me encaixo?

Enfim, uma das considerações finais feita pelo cardeal Kasper, vejo também como um pequeno e indireto sinal positivo:

"Não podemos limitar o debate à situação dos divorciados em segunda união e a muitas outras situações pastorais difíceis que não foram mencionadas no presente contexto. Devemos tomar um ponto de partida positivo e redescobrir e anunciar o Evangelho da família em toda a sua beleza. A verdade convence mediante a sua beleza. Devemos contribuir, com as palavras e os fatos, para fazer com que as pessoas encontrem a felicidade na família e, de tal modo, possam dar às outras famílias testemunho dessa sua alegria. Devemos entender novamente a família como Igreja doméstica, torná-la a via privilegiada da nova evangelização e da renovação da Igreja, uma Igreja que está a caminho junto às pessoas e com as pessoas".

Só espero que a Igreja esteja, também, a caminho junto às pessoas homossexuais...

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