ESTE BLOG NÃO POSSUI CONTEÚDO PORNOGRÁFICO

Desde o seu início em 2007, este blog evoluiu
e hoje, quase exclusivamente,
ocupa-se com a reflexão sobre a vida de um homossexual,
no contexto de sua fé católica.



_____________________________________________________________________________



29 de março de 2014

Um "honesto" desonesto

Foto [editada] do Portal
do Ministério Público Federal

Paulo Vasconcelos Jacobina é Procurador Regional da República, Membro do Ministério Público, Bacharel em Direito e Mestre em Direito Econômico. É também autor de várias publicações profissionais e... religiosas. Em uma entrevista, concedida em 2012 ao portal "Missão Eylon", Paulo conta um pouco da história de sua conversão ao catolicismo. A conversa foi realizada na ocasião do lançamento de um dos seus livros, "Cartas a Probo", apresentado como "uma conversa cristã cobre o espiritismo". O final da entrevista merece uma atenção especial:

- [representante não assinado do portal]: Por que "Cartas a Probo"? Qual o significado do nome Probo?

- [Paulo Vasconcelos Jacobina]: Probo significa honesto, leal, no sentido de que estas cartas representam uma busca honesta e leal da verdade: são dirigidas aos que estão buscando a verdade lealmente, mesmo que em caminhos diferentes dos nossos. São um verdadeiro voto de confiança no leitor: sejamos honestos, leais no caminho da busca, e certamente Deus não deixará de nos iluminar com a Sua verdade.

É difícil não ficar admirado com tamanha apologia da honestidade, uma virtude tão rara hoje em dia. Naturalmente, espera-se que todos os textos deste autor tenham a mesma marca. Infelizmente, a admiração inicial muda de conteúdo. Continua sendo uma admiração, mas o seu sentido é negativo, torna-se um espanto. A expectativa transforma-se em decepção. Basta ler o mais recente artigo de Paulo Vasconcelos Jacobina, publicado no portal católico de notícias "Zenit" (28 de março de 2014), "Criminalizar discordâncias majoritárias sob o rótulo de fobia não é democrático".

Ainda que consigamos engolir a sua argumentação sobre a democracia, bem como a comparação (tolerável, mesmo que distante) com a situação das minorias muçulmanas no ocidente, não há possibilidade alguma de considerar honesta a sua afirmação sobre as ambições dos ativistas de "certas minorias sexuais", no contexto da luta pelo Plano Nacional de Educação. A desonestidade consiste em atribuir a estes ativistas os objetivos que, de fato, não existem, denegrindo assim a sua imagem. Certamente, como um profissional de Direito, o Procurador Regional da República e membro do Ministério Público, o autor entende a natureza e o peso de calúnia, difamação e injúria. Eis a sua tese:

Para essa militância radical, não somente a prática do incitamento a crimes contra homossexuais é considerado como "homofobia", mas qualquer posicionamento público, de cunho filosófico, científico ou religioso que não parta dos mesmos pressupostos que as minorias sexuais usam para ver-se e interpretar-se. Afirmar a possibilidade de que um ser humano controle seus impulsos sexuais, ou mesmo um simples chamado à castidade, à fidelidade, à responsabilidade com a prole e com o outro, a valorização da abertura à vida na conduta sexual, em nome de religião ou de aperfeiçoamento moral, ficariam classificados como "fala de ódio", "homofobia" e "intolerância" a serem combatidos e criminalizados pelo Estado.

Isso não é verdade, caro Doutor Jacobina! Embora não faltem indivíduos promíscuos entre as pessoas homossexuais, assim como entre as heterossexuais, nós estamos falando sobre os seres humanos que levam a sério a sua vida e o seu compromisso com a sociedade. Muitos, inclusive, vivem séria e profundamente a sua relação com Deus e com a Igreja (apesar de toda falta de acolhimento por parte da comunidade eclesial). Embora, em outra parte de sua entrevista, o senhor tenha considerado "democrático (...) aguentar não somente a discordância e até avacalhação humorística que deve ser resolvida no campo de debates francos", não tem nada de franco criar a imagem de pessoas homossexuais e de seus movimentos como inimigos de castidade, fidelidade e responsabilidade, ou como criaturas bizarras, movidas apenas por seus incontroláveis impulsos sexuais. Ainda que a nossa "conduta sexual" não possua uma natural abertura à vida (no sentido do ato de procriação), nós não desvalorizamos a própria abertura à vida, nem as pessoas que receberam este dom. Graças a Deus e graças aos avanços de democracia, os casais homoafetivos, em um número cada vez maior, têm a alegria de adotar os filhos. Posso lhe assegurar de que a responsabilidade pela prole nestas famílias supera a realidade de muitos casais heterossexuais.

A distorção de uma realidade, só por falta de conhecimento, misturada com a autêntica fobia e com a "democrática avacalhação humorística", leva muitos fanáticos aos crimes de agressão verbal e física, não raramente ao homicídio. A discriminação das pessoas homossexuais, principalmente com a base das convicções religiosas, ainda é um triste fato que, apesar dos inquestionáveis avanços da verdadeira democracia que respeita os direitos humanos, é um câncer no tecido da sociedade. O que me entristece é que os que se apresentam como honestos e leais defensores da verdade (ainda em nome de Jesus), acabam recorrendo à desonestidade para que, através de sua eloquência e de seus títulos, implantar ainda mais intolerância naqueles que se deixam levar por este tipo de discursos.
---------------------------------------------
Observação: Paulo Vasconcelos Jacobina, em seus artigos publicados no portal católico de notícias "Zenit", dedica-se quase exclusivamente aos assuntos ligados a pessoas homossexuais. Provavelmente não será um exagero imaginar o grau de sua "honestidade" ao abordar tal temática:

25 de março de 2014

A orientação e os juristas


O portal da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro divulgou uma nota sobre a reunião plenária da União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro - UJURCAT-RJ. O texto traz a conclusão daquela reunião plenária:

A União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro - UJURCAT-RJ em sua reunião plenária, realizada no dia 24 de março de 2014, com a presença de Sua Eminência Cardeal Dom Orani João Tempesta, digníssimo arcebispo metropolitano do Rio de Janeiro, aprovou por unanimidade posição contrária a inserção do termo 'gênero' e da expressão 'orientação sexual' como princípio e/ou diretriz do Plano Nacional de Educação - PNE. Trata-se de termo e de expressão carregados de ambiguidade e de ideologias, que não se prestam a definição de diretriz e de princípio. A propósito a referência à vedação de discriminação por motivo de sexo, prevista no Artigo 3°, inciso IV, da Constituição Federal, é adequada, consentânea e legítima e tem o apoio da UJURCAT.

Não pretendo entrar em discussão sobre o primeiro dos termos, isto é, 'gênero' que, de fato, precisa de uma definição mais clara ou, ao menos, mais conhecida para deixar de ser "um termo carregado de ambiguidade". A meu ver, o problema não é a falta de definição, mas a existência de muitas definições. Escrevi sobre uma delas neste blog (aqui).

O que me deixou curioso é a "posição contrária" dos juristas católicos do Rio em relação à expressão "orientação sexual". Se não for a orientação, então, é o que? A opção? Gostaria muito de crer que não seja isso o que queriam dizer os juristas católicos do Rio! Qual, então, é o problema em usar a expressão "orientação sexual", se ela aparece, também, em alguns documentos oficiais da própria Igreja? Existe, aliás, certa inconsequência na linguagem, digamos, institucional, da Igreja Católica.

Por um lado, o representante da Santa Sé na ONU, em dezembro de 2008, apresentou a posição da Igreja sobre a proposta da "Declaração sobre os direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero", com as seguintes afirmações:

Em particular, as categorias "orientação sexual" e "identidade de gênero", usadas no texto, não encontram reconhecimento, nem clara e partilhada definição no direito internacional. Se elas tivessem que ser tomadas em consideração na proclamação e na tradução prática dos direitos fundamentais, seriam causa de uma grave incerteza jurídica, como também viriam a minar a habilidade dos Estados para aderir e pôr em prática convenções e padrões novos e já existentes sobre os direitos humanos.

Até aqui, a argumentação da UJURCAT-RJ está dentro do padrão. Será mesmo que existe um "padrão" no discurso oficial da Igreja? Em um outro documento que só aparentemente não tem nada a ver com as declarações do representante da Santa Sé na ONU, encontramos a mesma expressão "orientação sexual", porém, sem qualquer contestação da mesma:

Na avaliação da possibilidade em viver, na fidelidade e alegria, o carisma do celibato, como um dom total da própria vida à imagem de Cristo, Cabeça e Pastor da Igreja, tenha-se presente que não basta certificar-se da capacidade de abstinência do exercício da genitalidade, mas é necessário igualmente avaliar a orientação sexual segundo as indicações promulgadas por esta Congregação. [Congregação para Educação Católica, Orientações para a utilização das competências psicológicas na admissão e na formação dos candidatos ao sacerdócio; n. 8; Vaticano, 2008].

O texto indica mais um documento: "Instrução sobre os critérios de discernimento vocacional acerca das pessoas com tendências homossexuais e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras". Aqui, de fato, não encontramos a controversa expressão "orientação sexual", porque o texto insiste em repetir a fórmula "tendências homossexuais profundamente radicadas", além de introduzir a teoria sobre as "tendências homossexuais que sejam apenas expressão de um problema transitório como, por exemplo, o de uma adolescência ainda não completa" e que "devem ser claramente superadas, pelo menos três anos antes da Ordenação Diaconal" [n. 2].

Em mais um documento, "Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais", a Igreja tenta explicar a sua postura em relação à expressão "orientação sexual":

A pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus, não pode definir-se cabalmente por uma simples e redutiva referência à sua orientação sexual. Toda e qualquer pessoa que vive sobre a face da terra conhece problemas e dificuldades pessoais, mas possui também oportunidades de crescimento, recursos, talentos e dons próprios. A Igreja oferece ao [talvez "no" - obs. minha] atendimento da pessoas humana aquele contexto de que hoje se sente exigência extrema, e o faz exatamente quando se recusa a considerar a pessoa meramente como um "heterossexual" ou um "homossexual", sublinhando que todos têm uma mesma identidade fundamental: ser criatura e, pela graça, filho de Deus, herdeiro da vida eterna. [n. 16] 

A mesma instituição (a Igreja católica), ainda que em um tom de crítica, não hesita ao usar a mesma expressão "orientação sexual". Em uma nota sobre o livro de Pe. André Guindon, "The sexual creators. An ethical proposal for concerned christians" (1986), a Santa Sé diz:

Parece que ele [Pe. André Guindon] não reconhece muita liberdade às pessoas homossexuais, em relação com a orientação sexual das mesmas, nem a possibilidade de abstinência sexual. (...) A possibilidade de uma pessoa homossexual mudar para uma orientação heterossexual, mediante a psicoterapia [sic!], é ridicularizada e rejeitada

Existe, portanto, algo chamado "orientação sexual"? Uma coisa semelhante afirmou o Beato João Paulo II, ainda no início de seu pontificado, quando elogiou os bispos norte-americanos por terem escrito uma carta ao Povo de Deus:

Como homens que têm palavras de verdade e o poder de Deus (2  Cor 6, 7), como autênticos mestres da lei de Deus e pastores compadecidos, afirmastes também com justiça: "O comportamento homossexual... enquanto coisa distinta da orientação sexual, é moralmente desonesto". Na clareza [sic!] desta verdade, exemplificastes a caridade efetiva de Cristo: não traístes aqueles que, por causa da homossexualidade, se encontram perante problemas mais difíceis, como aconteceria se, em nome da compreensão e da compaixão, ou por qualquer outro motivo, tivésseis despertado uma falsa esperança a qualquer irmão ou irmã.

Percebe-se, então, que o termo "orientação sexual" tem conquistado o espaço na linguagem e no entendimento da Igreja, assim como (ou, ainda mais) na cultura da sociedade em geral. Notamos, ao mesmo tempo, uma constante tentativa de fuga desse assunto por parte da Igreja, enquanto instituição. As agremiações do tipo da UJURCAT, citada acima, podem contribuir melhor para a compreensão mais ampla de uma realidade que talvez nunca tenha a sua definição completa e absoluta, mas nem por isso deixa de fazer parte vital da nossa existência e da nossa convivência. Além disso, o termo "orientação" é muito mais correto do que a palavra "opção" que continua circulando por aí e ainda causa bastante confusão. Não canso de dizer que o fato de ser um homossexual não é a minha opção. Talvez seja a orientação e, sem dúvida, é a minha identidade.

16 de março de 2014

A pobreza multifocal


Confesso que nunca gostei da ideia de associar a Campanha da Fraternidade à Quaresma. A reflexão sobre os mais graves problemas sociais é, sem dúvida, muitíssimo importante, porém, a Quaresma em si, já traz tanto conteúdo que acrescentar mais um (por mais que se tente estabelecer analogias), só pode trazer prejuízo. É como acrescentar a água no feijão. A panela fica mais cheia, mas o sabor se perde, fica diluído. Ou, então, tendo no armário uma prateleira cheia e outra pela metade, mesmo assim, insistir em enfiar mais coisas, justamente naquela que está cheia. Será que não faria mais sentido, por exemplo, inaugurar a Campanha da Fraternidade naquele espaço entre o Natal e as Cinzas, prosseguindo, depois, ao longo do tempo comum? Do jeito como está, nem a Quaresma, nem a Campanha, conseguem penetrar suficientemente o coração do povo. Será que a superficialidade é proposital? Enfim... foi apenas um pequeno desabafo, à margem do tema principal. 

O Papa Francisco propõe uma reflexão para a Quaresma deste ano. É sobre Jesus que se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza (cf. 2 Cor 8, 9). Vale a pena ler a sua mensagem. Ciente da confusão cultural e linguística, o Papa procura explicar o verdadeiro sentido da pobreza, enquanto uma virtude. Nada de "coitadismo" e nada de limitação da pobreza à dimensão apenas material. Francisco fala, entre outras coisas, de pobreza moral e espiritual (além da material) e destaca a miséria como um grito dos sofredores que devemos ouvir e atender. A pobreza, em sua dimensão evangélica, é essencialmente uma vocação de cada cristão, chamado a imitar o Mestre Jesus que, através do despojamento por amor, redimiu a humanidade. Diz o Papa:

A finalidade de Jesus se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas - como diz São Paulo - "para vos enriquecer com a sua pobreza". Não se trata de um jogo de palavras, de uma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! (...) Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na berma da estrada (cf. Lc 10, 25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e verdadeira felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha.

A lógica de Deus, da qual fala o Papa, é a lógica do amor. Quem já amou, sabe disso. De quantas coisas somos capazes de abrir mão, só para manifestar o nosso amor por aquela pessoa especial. E fazemos isso sem amargura. Pelo contrário, ficamos felizes (ricos em felicidade), ao ver a pessoa amada feliz. E isso acontece tanto entre as pessoas heterossexuais, quanto homossexuais. A experiência do amor não depende da orientação (identidade) sexual e não se limita com ela. Neste ponto tenho mais uma observação...

Muitos cristãos (talvez a sua maioria) associam as pessoas homossexuais ao pecado, à promiscuidade, à depravação... enfim, mandam-nos logo para o inferno. Até no mesmo texto da mensagem do Papa identificam-nos imediatamente com a "miséria moral". O Santo Padre diz: "a miséria moral (...) consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. (...) Esta forma de miséria (...) anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos auto-suficientes, vamos a caminho da falência.

Ora, ser homossexual não equivale ao ser escravo do vício e do pecado. As crianças de 7-8 anos aprendem na catequese que o pecado é algo voluntário (além de consciente e contrário à vontade de Deus). Eu não sou gay porque quero ser gay. A homossexualidade nunca foi uma opção, apesar de tantos insistirem em usar tal termo. E tem mais: ser gay não significa necessariamente recusar o amor de Deus e considerar-se auto-suficiente a ponto de julgar não necessitar de Deus. Muito pelo contrário. Por isso acrescento à lista de misérias, proposta pelo Papa, a miséria intelectual de todos aqueles que, em nome de Jesus (ou por outra razão), rotulam as pessoas homossexuais (e as demais da diversidade LGBT) de "pobres pecadores" e tentam sentar-se no trono de Deus, o único Justo Juiz, prevendo para nós a condenação eterna e a exclusão social e eclesial até a morte (ou até o momento em que decidirmos abandonar a homossexualidade e abraçar a única forma "legítima" de sentir e de amar, isto é, a heterossexualidade).

4 de março de 2014

O prelúdio do Sínodo


O recente consistório (a reunião dos cardeais com o Papa) não faz parte do Sínodo dos Bispos, mesmo assim, ganhou o "sobrenome" de "Consistório da Família" e, com razão, a sua leitura está sendo feita, justamente, no contexto do Sínodo (previsto para o próximo mês de outubro). O portal ihu.unisinos traz o longo texto do discurso, feito durante o consistório pelo cardeal Walter Kasper a pedido do Papa Francisco e o comentário inicial da redação traz a expressão "ouverture", fazendo alusão à introdução a uma peça musical (assim mesmo como o título desta reflexão). Ainda dentro dessa analogia, posso dizer que a palestra do cardeal Kasper é uma "ópera" ou talvez "sinfonia" em favor da família e de sua forma bíblico-tradicional. Sim, temos algumas novidades, quase dissonâncias, quando se trata de propostas relacionadas à admissão de (algumas) pessoas divorciadas e recasadas aos sacramentos. De acordo com outro cardeal alemão, Reinhard Marx, o discurso de Kasper despertou fortes oposições por parte de muitos participantes do consistório.

O texto é longo e requer (e, eu acho, merece) uma atenção redobrada. O meu contexto de leitura é a perspectiva LGBT e, por este ângulo, algumas afirmações destacam-se de maneira especial:

"A instituição da família é, embora com todas as diferenças particulares, a ordem original da cultura da humanidade. Não pode ter um bom sucesso estabelecer hoje uma nova definição da família, que contradiga ou mude a tradição cultural de toda a história da humanidade".

"Não nos tornamos homem ou mulher através da respectiva cultura, como afirmam algumas opiniões recentes. O ser homem e o ser mulher estão fundamentados ontologicamente na criação. A igual dignidade da sua diversidade explica a atração entre os dois, cantada nos mitos e nos grandes poemas da humanidade, assim como no Cântico dos Cânticos do Antigo Testamento. Querer torná-los iguais por ideologia destrói o amor erótico. A Bíblia entende esse amor como união para se tornar uma só carne, isto é, como uma comunidade de vida, que inclui sexo, eros, além da amizade humana ([Gn] 2, 14). Nesse sentido completo, o homem e a mulher foram criados pelo amor e são imagem de Deus, que é amor (1 J0 4, 8)".

Enquanto todas as esperanças (de uma percepção nova do amor entre as pessoas do mesmo sexo) parecem mortas e sepultadas, brotam no mesmo texto - a meu ver - alguns modestos sinais positivos, ainda que de forma indireta. O primeiro deles é a antiga e clássica relação entre o matrimônio e o celibato. O cardeal Kasper lembra:

"Como o celibato livremente escolhido se torna uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, o matrimônio também, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social, mas sim uma livre escolha. Sobretudo as mulheres não casadas são agora reconhecidas mesmo sem um marido. Assim, o matrimônio e o celibato se valorizam e se sustentam mutuamente, ou ambos juntos entram em uma crise, como infelizmente estamos experimentando agora".

Por analogia, podemos dizer que o casamento entre as pessoas do mesmo sexo que também já se tornou uma situação sociologicamente reconhecida em si mesma, faz com que a união matrimonial entre um homem e uma mulher, por causa dessa alternativa, não é mais uma obrigação social. Assim, o casamento heterossexual e a união homoafetiva se valorizam e se sustentam mutuamente. A visão do casamento igualitário como uma ameaça, ou um atentado contra a família tradicional, não tem mais razões para existir.

O outro sinal de esperança, pequeno e indireto, vem da abordagem de uma das situações, tradicionalmente tidas como irregulares, agora, porém, apresentada em uma ótica diferente. É a questão daqueles que, tendo o seu primeiro matrimônio sacramental desfeito, estão vivendo a "segunda união", baseada no contrato civil. Em primeiro lugar, o palestrante refere-se, de maneira mais generalizada, às "famílias desagregadas" e diz:

"Não basta considerar o problema só do ponto de vista e da perspectiva da Igreja como instituição sacramental; precisamos de uma mudança de paradigma e devemos - como fez o bom samaritano (Lc 10, 29-37) - considerar a situação a partir da perspectiva de quem sofre e pede ajuda".

Depois de recordar as antigas e clássicas tentativas de encontrar a solução, principalmente a avaliação das possibilidades de constatar a eventual nulidade do casamento religioso (e, consequentemente, promover a "santificação" da união existente), o cardeal Kasper lança uma nova proposta que diz respeito aos casais que não têm essa possibilidade, ou seja, àqueles que continuam sendo considerados "irregulares". Eu entro aqui, com a observação de que o meu casamento (caso exista um candidato que se aventure para tal façanha) também seria considerado irregular perante a Igreja (pois seria com um homem!) e sem chance de ser elevado ao nível do Sacramento do Matrimônio. Segundo os critérios propostos pelo cardeal, porém, nós dois, tendo cumprido certas condições, seríamos admitidos à Comunhão Eucarística, a não ser que a minha lógica esteja falhando.

Antes de chegar aos pontos concretos, o cardeal Kasper polemizou com a ideia (sustentada, inclusive, pelo Papa Bento XVI) sobre a "comunhão espiritual" que - unicamente - seria acessível aos casais "irregulares":

"De fato, quem recebe a comunhão espiritual é uma coisa só com Jesus Cristo; como pode, então, estar em contradição com o mandamento de Cristo? Por que, portanto, não pode receber também a comunhão sacramental? Se excluímos os cristãos divorciados em segunda união que estão dispostos a se aproximar deles [sacramentos] e os encaminhamos à vida de salvação extrassacramental [sic!], talvez não colocamos em discussão a estrutura fundamental sacramental da Igreja? Então, de que servem a Igreja e os sacramentos? Não pagamos um preço alto demais com essa resposta? Alguns defendem que justamente a não participação na comunhão é um sinal da sacralidade do sacramento. A pergunta que se coloca em resposta é: não seria talvez uma instrumentalização da pessoa que sofre e pede ajuda se fazemos dela um sinal e uma advertência para os outros? Deixamo-la sacramentalmente morrer de fome para que os outros vivam?".

Após essa premissa dramática, o palestrante passou para os pormenores da proposta:

"Um divorciado em segunda união:
1) se se arrepende do seu fracasso no primeiro matrimônio;
2) se esclareceu as obrigações do primeiro matrimônio, se definitivamente excluiu que volte atrás;
3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com o novo matrimônio civil;
4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades o segundo matrimônio a partir da fé e para educar os próprios filhos na fé;
5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação,
- devemos ou podemos negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?"

Entro aqui, de novo, com as minhas analogias:

Uma pessoa homossexual:
1) se se arrepende do seu fracasso nas tentativas de estabelecer uma união heterossexual, ou até mesmo se arrepende por ser homossexual, ou seja, admite o fato de que tal condição não depende de sua vontade livre (tipo: "ah, como seria mais fácil, eu ser uma pessoa heterossexual, mas, infelizmente, isso não depende de mim");
2) se esclareceu as obrigações do casamento com uma pessoa do sexo oposto e se excluiu definitivamente a possibilidade de tal casamento;
3) se não pode abandonar sem outras culpas os compromissos assumidos com a união homoafetiva;
4) se, porém, se esforça para viver no melhor das suas possibilidades a união homoafetiva a partir da fé e para educar na fé os filhos que adotou;
5) se tem o desejo dos sacramentos como fonte de força na sua situação,
- a Igreja deve ou pode negar-lhe, depois de um tempo de nova orientação (metanoia), o sacramento da penitência e depois da comunhão?

O cardeal parece ler os meus devaneios e logo acrescenta uma misteriosa advertência:

"Um casamento civil como descrito com critérios claros deve ser diferenciado de outras formas de convivência 'irregular' como os casamentos clandestinos, os casais de fato, sobretudo a fornicação e os chamados casamentos selvagens [sic!]. A vida não é só branco e preto; de fato, há muitas nuances". Bem, fiquei na dúvida: onde é que eu me encaixo?

Enfim, uma das considerações finais feita pelo cardeal Kasper, vejo também como um pequeno e indireto sinal positivo:

"Não podemos limitar o debate à situação dos divorciados em segunda união e a muitas outras situações pastorais difíceis que não foram mencionadas no presente contexto. Devemos tomar um ponto de partida positivo e redescobrir e anunciar o Evangelho da família em toda a sua beleza. A verdade convence mediante a sua beleza. Devemos contribuir, com as palavras e os fatos, para fazer com que as pessoas encontrem a felicidade na família e, de tal modo, possam dar às outras famílias testemunho dessa sua alegria. Devemos entender novamente a família como Igreja doméstica, torná-la a via privilegiada da nova evangelização e da renovação da Igreja, uma Igreja que está a caminho junto às pessoas e com as pessoas".

Só espero que a Igreja esteja, também, a caminho junto às pessoas homossexuais...

1 de março de 2014

Meu carnaval permanente


Os dias de carnaval, pelo menos aqui, no Brasil, criam uma sensação de estarmos em algum tipo de universo paralelo. As leis, os costumes e... os problemas, em sua maioria, ficam suspensos. Nada mais é estranho, ou melhor, o mais estranho é normal. É fácil despir-se de pudores para se revestir de fantasias. É a fantasia que reina e ninguém quer saber quem é quem. Não importa. É o teatro popular, um fenômeno vivido pela humanidade desde as suas origens, com a edição talvez mais clássica, lá na Grécia antiga. A hipocrisia perde a sua conotação pejorativa, retornando aos primórdios em que colocar uma máscara era apenas a nobreza da arte, ou seja, era uma mentira autorizada e consagrada. Por aqui, depois de alguns dias, irão sobrar as toneladas de lixo, as fantasias serão guardadas para o ano que vem e a vida, aos poucos, voltará à seriedade de sempre. As pessoas voltarão a mostrar as suas caras e as suas identidades...

O meu carnaval, entretanto, não termina na quarta-feira de cinzas. Eu continuarei usando a minha fantasia. É uma máscara do homem politicamente correto, talvez um pouquinho rebelde, tipo pirracento, mesmo assim, gentil e educado, bom (ou, pelo menos, médio) cristão, um cara que se veste sem extravagância, um tanto caladão, tímido, rotineiro, previsível. E, principalmente, um sujeito assexuado, supostamente heterossexual, por ser mais óbvio e porque ninguém toca nesse assunto. Até mesmo por não ter motivo para tocar. Sim, a minha fantasia de um carnaval permanente, pode ser chamada de... armário. 

Bem, falando com sinceridade, eu já tirei a minha fantasia. Foi diante de algumas pessoas e entre elas, umas quatro, que me viram não somente sem a fantasia, mas também sem a roupa (e não estou falando de médicos). Algumas outras pessoas conseguiram enxergar através da minha fantasia e, de alguma maneira, descobriram que sou gay. Mas também não tocamos muito nesse assunto. Tipo: "sabe-se, mas não se fala".

Sinceramente, não sei até quando vou viver este carnaval. Algumas vezes já tive vontade de "chutar o pau da barraca". Outras vezes fiz ou falei coisas para provocar, mas foi como brincar com a própria máscara, fingindo querer tirá-la. E não tirei e ninguém conseguiu arrancá-la de mim.

Mas o carnaval é uma ótima oportunidade para esse tipo de reflexão.